Violência de gênero também está presente na Justiça Criminal

Pesquisa lança olhar sobre a vivência de mulheres nas situações de vítimas e de acusadas do cometimento de crimes

Foto: Divulgação/REUTERS/Ueslei Marcelino

Um dos tipos de violência de gênero mais banalizados na sociedade brasileira é a violência institucional. Aquela que acontece em espaços comuns e que muitas vezes é resguardada por legislações. “As mulheres são muito fragilizadas dentro de um contexto que já é de total precariedade que é o Sistema Prisional e o Sistema de Justiça Criminal como um todo. É um Sistema muito violento, em que está muito presente a violência institucional, baseada no gênero muito”, explica a pesquisadora Fernanda Emy Matsuda, que jogou um olhar para a violência de gênero inserida nesses sistemas em sua tese “Sob fogo cruzado: a gestão de mulheres e a justiça criminal paulista”.

Em sua pesquisa, ela se volta para duas situações: mulheres vítimas de crimes e mulheres acusadas de cometerem crimes. “São problemas que caminham de uma forma paralela, são coincidentes na trajetória das mulheres com muita frequência. É possível avaliar um pouco a performance do Sistema de Justiça Criminal quando a gente olha para essas duas faces”, explica.

“Quando se trata das mulheres vítimas de violência, a gente acaba recaindo numa exacerbação do punitivismo. Quando a gente olha para as mulheres presas, que já estão numa situação de vulnerabilidade e que dentro do sistema prisional acabam encarando condições muito difíceis, a gente acaba recaindo numa vitimização dessas mulheres, deixando elas sem voz e sem protagonismo”, explica Fernanda.

Quanto às mulheres vítimas de crimes, Fernanda ressalta que existe sempre um questionamento sobre o comportamento da vítima. A vestimenta, o que ela estava fazendo na rua sozinha, naquele horário. “Tudo está estruturado no sentido de desacreditar e de colocar a mulher sob questionamento. Além disso, reforça a ideia do retorno ao lar e ao espaço privado. É um discurso que acaba ocultando muito a violência e ao mesmo tempo reforçando estereótipos”, explica a pesquisadora.

A pesquisadora acompanhou a história de três personagens. Duas foram acompanhadas pessoalmente e a história da terceira foi acessada indiretamente, por meio de informações dos sistemas penal e judicial. A partir dessas histórias, Fernanda pôde compreender melhor esses dois sistemas que, segundo ela, “não dão conta de tratar das especificidades de um ser humano, que dirá um ser humano do gênero feminino”. Também foi possível entender a que tipo de violências as mulheres estão sujeitas e como elas fazem a sua resistência.

Para ela, as instituições de poder pelas quais ambas as mulheres têm de passar, têm dificuldade em incorporar uma ideia de gênero que seja diversa da lógica que atribui às mulheres papéis de gênero estereotipados.

“A preocupação é sempre com a maternidade. Isso foi visto na Lei das Cautelares, que amplia direitos dentro desse cenário de constante punição, mas ao mesmo tempo é um trabalho legislativo que reforça estereótipos de gênero. As mulheres no sistema prisional não são vistas em todas as suas dimensões”, afirma Fernanda.

Um olhar sobre as mulheres acusadas

De acordo com a pesquisa, há uma explosão das estatísticas de mulheres presas. Nos últimos dez anos houve um crescimento muito acentuado e mais acelerado do que o dos homens. O fenômeno é novo e por isso tem sido objeto de estudo.

Nesse âmbito da pesquisa, o enfoque principal é a associação das mulheres e do tráfico de drogas. Esse é um dos crimes que mais levam as mulheres a serem condenadas, vindo apenas depois do furto.

A pesquisadora explica que as mulheres se valem de certas estratégias frente a realidades socioeconômicas muito duras, que impõe a elas papéis de gênero muito determinados. “O tráfico de drogas é um crime que permite também às mulheres exercerem a maternidade, porque é isso que é exigido delas. Ao mesmo tempo elas tem que dar conta de toda a administração das escassez. É o caso da maioria das mulheres que estão no sistema prisional porque são marcadas pela pobreza, pela cor, falta de escolaridade, inserção precária no mercado de trabalho, é uma lógica muito perversa”, explica.

“Existe uma opção política hoje de reprimir o tráfico de drogas e as mulheres são a ponta mais fraca dessa rede. Muito raramente estão na função de gerência de uma biqueira ou na administração de muitos traficantes”, explica Fernanda. Por conta disso, elas têm menos condições para negociar quando há a prisão em flagrante, que é a porta de entrada para o sistema criminal.  

Fernanda explica que as mulheres são colocadas como “seres dóceis” pelo sistema prisional. “Dessa forma, a mulher traficante ou que roubou são vistas com menos condescendência do que o furto, que a gente chama de crime de bagatela. Existe essa leitura estereotipada”, comenta.  

Em cárcere


Da delegacia, elas passam para o centro de detenção provisório e podem ficar presas até o fim do processo criminal. Podem ser meses e até anos. Segundo Fernanda, essa experiência é muito comparável à vivência prisional. “Mesmo sofrimento e mesmas incertezas de não saber quando vão sair. Os prazos nunca são cumpridos”, acrescenta, ressaltando que elas também serão vítimas de violência ao longo da vida dentro do sistema penal e criminal.

Dentro do sistema prisional, em cárcere, uma das personagens acompanhadas por Fernanda sofreu torturas e maus tratos que deixaram nela sequelas, psicológicas e físicas. A pesquisadora faz um relato sobre a situação da personagem:

Foi uma violência brutal e institucional. Foi não só dentro do ambiente prisional, mas foi causada por agentes penitenciários. Então essa mulher que cometia crimes virou vítima de um crime. Não que ela não tivesse sido vítima de múltiplas violações de direitos antes. Ela acabou sendo vítima de um crime dentro do sistema prisional e ela não foi reconhecida como uma vítima. Não houve a responsabilização das pessoas que provocaram os ferimentos. Não prestaram socorro, ela ficou um tempão sem nenhum cuidado médico. Ela chegou a perder um olho. E tentaram se livrar da situação transferindo ela de unidade. A vida dela já era muito difícil e ficou ainda pior. Esse caso mostra exatamente de que direitos a gente está falando. O que é você ser uma mulher que não cometeu um crime violento, que é presa, sofre uma violência terrível e não é reconhecida como vítima. Assistir ao julgamento dos agentes penitenciários foi muito difícil. Ela foi no julgamento. Foi obrigada a assistir e a reviver toda aquela violência. E ter que lidar com a falta de resposta do Sistema de Justiça.

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