Resultados práticos da torcida única não alteraram visão da mídia em São Paulo

Pesquisa analisa cobertura e efeitos financeiros da medida um ano após entrar em vigor

“Em termos de gestão, a medida é positiva para os clubes porque aumentou a receita. E isso é um dado prático, real”, afirma o pesquisador Ivan Furegato. Fotografia: Divulgação/ Allianz Parque Facebook

Vigente há dois anos e quatro meses, a torcida única transformou por completo a atmosfera dos clássicos paulistas. Tomada em 4 de abril de 2016, a medida foi consequência do recorrente cenário de violência atrelado ao espetáculo esportivo em São Paulo.

O ápice dessa conjuntura de guerra de torcedores foi o confronto entre membros de organizadas do Corinthians e Palmeiras. Além de mais de 50 feridos, o conflito também resultou na morte de José Sinval Batista.

Mesmo não envolvido na briga entre membros da Gaviões da Fiel e da Mancha Alvi Verde, o baiano de 53 anos foi atingido no coração por uma bala perdida e acabou falecendo. O episódio se deu no dia anterior à proibição da torcida visitante nos estádios em dia de dérbis paulistas.

A decisão, adotada pela Secretaria de Segurança Pública em conjunto com a Polícia Militar e o Ministério Público, implicou em uma mudança inédita. Nas partidas entre dois dos quatro grandes do Estado (Corinthians, Palmeiras, Santos e São Paulo), os estádios, antes caracterizados pela presença de ambas torcidas, teriam apenas os adeptos da equipe mandante.

Em outubro do ano passado, a pesquisa de Ivan Furegato Moraes ganhou o prêmio de melhor pôster do 8º Congresso Brasileiro de Gestão do Esporte (CBGE). O doutorando da Escola de Educação Física e Esporte (EEFE) da USP estudou justamente a medida da torcida única, sua cobertura e os impactos na realidade dos clubes em questão.

Em sua análise, incluiu os efeitos e reflexos na quantidade de público e renda totais, além da forma que a determinação foi abordada pelos dois veículos jornalísticos de maior expressão (Folha e o Estadão). “A ideia inicial era ver como o torcedor estava reagindo e se a torcida única estava levando mais ou menos gente ao estádio”, conta.

A pesquisa foi realizada em 2017, concomitantemente à reunião de avaliação pelas autoridades após um ano de vigência da medida. O intuito, desta forma, era observar os resultados divulgados e verificar se houve alteração de posicionamento por parte da mídia. A partir desse “recorte de doze meses de validade”, conforme comenta Furegato.

Análise de público e financeira

Para analisar a parte financeira e de público, Furegato considerou apenas jogos dos campeonatos Paulista e Brasileiro da edição anterior e posterior à restrição da torcida visitante. Para estabelecer uma base de comparação, conforme justifica.

Sendo assim, fez a divisão entre os campeonatos Brasileiro de 2015 e Paulista de 2016 (antes da medida), e Brasileiro 2016 e Paulista 2017 (em vigência). Desta maneira, o estudo analisou a mesma quantidade de partidas entre as equipes em questão nas duas etapas de paridade.

No que diz respeito ao público nos clássicos, ele constatou um efetivo aumento, “inclusive compensando a perda de público da outra torcida”. Ou seja, além do incremento do número de pessoas frequentando o estádio, a quantidade de ingressos outrora destinada à torcida visitante foi aplicada e aproveitada pela equipe com o mando do jogo.

Além disso, até as áreas antes reservadas para separação das duas torcidas foram ocupadas. “E a receita obtida com os ingressos também aumentou”, revela. “No aspecto de aumento de público e financeiro, a medida foi positiva”, complementa.

No cálculo de receita, Furegato se embasou nos borderôs oficiais (relatórios financeiros da Federação Paulista de Futebol em conjunto com os clubes), levando em conta somente o valor da receita bruta dos ingressos.

Na somatória dos dois campeonatos, Furegato observou, em números, que o público médio dos clássicos após a medida teve um acréscimo de mais de sete mil pessoas. Ainda, se teve uma diferença geral de 130 mil pessoas, favorável à torcida única, ao contrapor os jogos nos dois períodos.

Com todo esse aumento, ele acrescenta que houve a entrada de mais de 3,5 milhões de arrecadação. ”O que se perdeu de público visitante foi muito pouco perto do que se ganhou no final”, finaliza.

A cobertura midiática

Durante duas fases – de 4 a 11 de abril de 2016, primeiramente, e de 29 de março a 7 de maio de 2017 -, Furegato examinou as matérias das versões impressa e digital da Folha de S. Paulo e do O Estado de São Paulo. Ele observou as abordagens dos dois jornais durante os dois estágios segundo gênero, personagens retratados e valoração do conteúdo (favorável, desfavorável ou neutro).

“O Estadão trabalhou muito mais notícia factual e ouviu mais fontes, inclusive internacionais”, conta. Ele destaca que o veículo teve a preocupação de falar com a família de José Batista, “de mostrar quem era aquela pessoa e a família sofrendo com o fato”. O pesquisador enfatizou que a cobertura informativa da medida extrapolou a esfera esportiva.

A Folha, diferente do Estadão, teve uma cobertura mais direta. Baseada no “aconteceu isso”, segundo ele. Por outro lado, Furegato chama atenção para a maior quantidade de matérias opinativas, não restritas aos colunistas esportivos, e pelo editorial do jornal sobre a medida.

Independente destes contrastes, ambos jornais se demonstraram contrários à torcida única. De 41 notícias analisadas, 30 eram contra e 11 a favor. “As matérias positivas eram as que continham algum dado ou as que entrevistavam alguém e essa pessoa era a favor. Algum membro do Ministério Público ou da Secretaria de Segurança”, explica.

Furegato comenta que, com um ano de vigência, a Polícia Militar divulgou informações que revelavam que a medida tinha sido positiva. Além da menor quantidade de briga nos estádios e nos entornos, os dados indicavam uma diminuição do efetivo policial e melhor distribuição da guarda pela cidade de São Paulo.

“Mesmo com as autoridades achando positivo”, começa, “a Folha e o Estadão mantiveram essa visão de ser contra e de que tinha efeito negativo”. “Alegando que era uma medida paliativa, até mesmo uma falência do Estado por não conseguir manejar o problema e por isso proibir ao invés de resolver”, acrescenta.

“Ou seja, o resultado prático não interferiu na visão da mídia”, conclui Furegato. Ele afirma que nenhum dos dois veículos divulgou os dados apresentados do ponto de vista econômico. “Eles não chegaram a divulgar esses dados amplamente, só a questão da diminuição dos conflitos, mas não chegaram a abordar esse viés econômico financeiro da medida”, expõe.

Ambos os veículos, segundo ele, recorriam apenas a profissionais voltados para a sociologia no esporte quando iam entrevistar especialistas para suas matérias. Sendo assim, ele acredita faltou “ouvir” pessoas com expertise em administração esportiva para apresentar o lado e a visão da gestão.

“O que me parece meio complicado, para o lado do jornalismo, de não se ver um dos olhares sobre aquela questão para poder analisar” argumenta. “Então fica essa lacuna na cobertura jornalística de não ver o lado da gestão, da realidade do clube”, finaliza Furegato.

Micro vs macro

“Dentro da realidade brasileira, entendo a medida e, de certa forma, sou até favorável pelos resultados comprovados”, assume. “Mas isso pensando no micro, na situação atual e na realidade de hoje”, explica.

“Com uma visão ampla, pensando na questão do esporte, do espetáculo e do evento esportivo, a medida é totalmente prejudicial”, revela. Ele faz menção ao caso recente da final do campeonato Paulista deste ano, em que o Corinthians foi campeão no estádio do seu rival Palmeiras.

“Porque, assim como um time precisa de um outro time de adversário, uma torcida precisa de outra”, esclarece. “Então, você vai fazer festa para você mesmo?”, indaga. “Fica meio sem graça, parece que tá faltando alguma coisa”.

Ele comenta que algumas opiniões contrárias à torcida única são “visões romantizadas do futebol”. “Para o espetáculo, a torcida única é negativa, mas eu a entendo para o lado da realidade do dia a dia”.

Furegato recorre à literatura sobre violência nos estádios para se justificar. “Porque é uma questão de segurança pública, muito mais ampla do que meramente a segurança de um evento esportivo”, explica. “Tudo indica que o fato de não ter a torcida visitante aumentou a sensação de segurança e o público no estádio”, aponta.

Torcida visitante como problema

O pesquisador vê um posicionamento dúbio dos times brasileiros, que se beneficiam com a torcida única, mas não a apoiam publicamente. “Me parece que eles estão em uma situação cômoda de não querer comprar briga com a imprensa e de questionar a determinação porque estão ganhando com isso”, critica.

“E como a federação também recebe uma porcentagem do ingresso, todos ganham financeiramente ali”, conta, cutucando a pouca pressão exercida pelas equipes e entidade para reverter a medida.

Quanto à elitização do futebol, ele traça um paralelo com a medida. “Acho que é uma tendência, tirar possíveis problemas para valorizar o produto”, indica. “Ao invés de combater o problema da violência, se tira o torcedor visitante. E isso vai muito de encontro com a crítica”, esclarece.

“Sendo mais seguro, pode cobrar mais caro”, menciona. “Penso que isso está incluso no processo de transformar o estádio em um lugar mais nobre, afastando a população mais pobre”, avalia Furegato.

“E faz parte disso tirar o problema”, acrescenta. “E a torcida visitante no Brasil, apesar de ser necessária para o espetáculo como um todo, se mostra como um problema”, finaliza.

É difícil determinar um prazo, mas acho que vai ser uma coisa meio difícil de reverter”, comenta sobre a possível duração da medida. Fotografia: Djalma Vassão/Gazeta Press

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