Universidade entra no cárcere há 12 anos

Grupo do Largo São Francisco procura reduzir distância entre prisão e sociedade

Imagem: Reprodução.

Já pensou se um projeto aproximasse cárcere, universidade e comunidade? Pois é, isso já acontece. Desde 2006, o grupo GDUCC (Grupo de Diálogo Universidade – Cárcere – Comunidade) promove debates e encontros entre pessoas encarceradas e não-encarceradas, com foco em alunos universitários. Concebido pelo professor Alvino Augusto de Sá, o grupo visa quebrar as barreiras sociais, econômicas e políticas que isolam naturalmente os presos do resto da sociedade.

Os diálogos acontecem sem nenhum tipo de pretensão militante, disciplinar ou moralizante. Segundo Alvino, “um dos principais objetivos do grupo é gerar um debate horizontal. Porque geralmente quem vai conversar com o preso é policial, psicólogo… É uma coisa que torna o preso mais objeto de análise do que humano”. Ele acrescenta que a ideia do grupo não é fazer a ressocialização, e sim a integração.

Mas os encontros não acontecem do nada. Para que ocorram, há um processo preparatório rígido. Primeiro, a seleção dos alunos: para a presente edição (são duas por ano), foram abertas 225 vagas ao todo. Os alunos foram divididos em três turmas diferentes, sendo uma nas segundas-feiras de manhã e duas nas terças-feiras à tarde.

A coordenadora adjunta Lígia Bonfanti comenta sobre o processo no qual entrou: “Uma amiga me avisou no último dia e consegui me inscrever de última hora. Geralmente, as vagas são preenchidas muito rápido”.

Após ter todas as vagas preenchidas, o grupo inicia os encontros teóricos. São cinco no total. O primeiro é uma aula magna com todos os inscritos. Os quatro encontros posteriores ocorrem entre as turmas. Segundo Lígia, “a primeira aula é sempre lotada. Esse ano algumas pessoas ficaram em pé”. A aula magna é ministrada pelo professor Alvino, com o tema “A Criminologia Clínica de Inclusão Social”. Nas aulas seguintes, os alunos aprendem sobre o contexto carcerário.

Equipe do GDUCC em janeiro de 2018. De baixo para cima, da esquerda para a direita: Priscila Coelho, Maria Isabel Hamud, Mônica Soligueto, Juliana Cunha, Helena Oliveira, Manuela Abreu, Isabella Alchorne, Will Martins, Manuela Ramos, Marcela Sampaio, Ligia Bonfanti, Maurício Abreu, Vivian Calderoni, Tassia Beatriz

As visitas

Após todos os encontros teóricos, iniciam-se as visitas ao cárcere. Entre os 225 inscritos do início do curso, 15 são escolhidos para essas visitas. Alguns dos requisitos para ser escolhido são ir em todas as aulas e fazer os exercícios propostos — a seleção final é feita através de uma entrevista individual.

Enquanto o número de alunos é fixo, o número de presos varia. Lígia Bonfanti comenta: “Não dá pra saber os critérios de seleção dos presos, nem quantos vão participar. Porém, geralmente, há uma quantidade semelhante de participantes  do GDUCC e de presos”.

Os presídios escolhidos podem variar também. Podem ser masculinos ou femininos, localizados por todo o Estado de São Paulo. Na presente edição do programa, participam o Presídio Adriano Marrey, a Penitenciária Feminina de Santana e a Ala de Progressão Belém II.

Depois de tudo planejado, alunos e monitores do programa vão até o presídio. Após chegarem ao local, passam os documentos dos participantes e aguardam serem chamados. Então, passam por um raio X, entregam os documentos e são acompanhados por guardas até o local do encontro.Cada visita é planejada num modelo de dinâmica de grupo, e cada uma é diferente da outra — as possibilidades são muitas.

Às vezes, o que ocorre são rodas de conversa. Lígia Bonfanti comenta que no início, geralmente, ambos os lados estão muito tímidos. “Até pedimos para que um preso e um aluno alternem. Mas em pouco tempo todo mundo já entrosa, já começa a conversar”.

A coordenadora adjunta Daniele Postoiev conta de uma dessas conversas. Uma aluna do GDUCC começou a conversar com uma presa, e descobriu que ambas tinham a mesma idade. No desenrolar da conversa, elas descobriram algo mais em comum: ambas moravam na mesma rua anos antes.

O professor Alvino de Sá fala que, certa vez, um preso perguntou a um aluno se ele atravessaria a rua caso o visse lá fora. O aluno não respondeu nada. Alvino comenta: “Há muitos presos que pensam que já o vemos como monstros. Que todo o tratamento bom acontece só porque está na cadeia”. Outras vezes, no entanto, ocorrem as dinâmicas. Brincadeiras, teatro, jogos, qualquer coisa que possa gerar interação entre os alunos e os presos.

Lígia comenta sobre uma dinâmica ocorrida nesse semestre, na Penitenciária Feminina de Santana: “O tema era saúde, tinha que organizar um teatrinho. Dividimos os grupos sempre tendo gente de fora e de dentro”. Os grupos representaram variações da mesma situação: pessoas passando mal na fila do SUS, com uma médica indiferente a isso.

Certa vez, Alvino conta, “houve uma dinâmica na qual cada um enchia uma bexiga e escrevia nela um sentimento que queria se livrar. Um dos presos escreveu ‘ódio e vontade de vingança’ na dele. Na hora de estourar, ele não quis. Disse que não ia adiantar”. Então, ele levou a bexiga de volta para a cela.

Em outros casos, ainda, o que ocorre é simplesmente o contato humano. As visitas do GDUCC dão aos presos uma oportunidade de se sentirem inseridos novamente na sociedade, mesmo que por duas horas semanais.

“Teve um preso uma vez”, disse Alvino, “que nunca falava nada. Achávamos que ele não estava gostando muito, porque era muito reservado. Quando foi a hora de perguntar o que eles achavam, ele disse que tinha gostado muito. Porque as visitas eram a única hora na semana em que ele se sentia gente, se sentia humano”.

A relevância do GDUCC

Desde sua fundação, o GDUCC marca a vida de quem participa. Presos, alunos e coordenadores se referem com carinho ao projeto.

Isabella Alchorne, coordenadora adjunta do grupo, comenta sobre os seus primeiros momentos nele: “De uma hora para a outra, você se vê ressignificando diversos setores da sua vida e do que sempre entendeu por uma sociedade. A quebra de barreiras que o grupo proporciona só pode ser explicada por quem participa. A experiência é única para cada um”.

Já Daniele Postoiev, também coordenadora adjunta, diz que o seu próprio rumo profissional foi definido pelo GDUCC. O grupo, diz ela “fez com que eu que soubesse pra que o direito realmente servia”. Daniele também comenta que como o direito é um mundo fechado, os alunos do curso têm pouco contato com situações reais. Muitos viram juízes sem ter visitado uma prisão — apesar disso ser previsto por lei.

A coordenadora Thalita Tozi, por sua vez, conta sobre a sua vivência no grupo. “Mais do que um guia para minhas escolhas acadêmicas e profissionais, o GDUCC me possibilitou vivenciar a (des)(re)construção do meu eu e da minha humanidade”, diz.

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