Disputas escondem um pedaço da história do teatro musicado

Crédito: Giovana Christ

Disputas internas do mundo do teatro e da construção de uma identidade cultural exclusivamente brasileira, já que antes as influências européias eram muito mais presentes no território brasileiro do que as criações dos que aqui nasceram, deixaram um grande marco na história do teatro brasileiro, mas nem tudo foi devidamente registrado.

O interesse de Virginia de Almeida Bessa sobre o teatro musicado em São Paulo entre os anos de 1914 a 1934 rendeu um doutorado, e agora, um pós-doutorado. A pesquisa intitulada “Um palco em disputa: teatro musicado, sociedade e cultura na São Paulo dos anos 1920 e 1930”, foi realizada no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB).

Em suas investigações, a pesquisadora buscou entender porque a maioria das informações sobre o assunto nesse período não estão nos registros históricos. Com isso, conseguiu construir um banco de dados surpreendente e promover diversas outras pesquisas sobre o assunto.

O teatro musicado, diferentemente de como hoje é conhecido como teatro musical, era um conjunto de gêneros teatrais “que incluía principalmente a revista, a opereta e a burleta, mas também a zarzuela, a mágica, o sainete e outros com música que misturam trechos falados e cantados”, segundo Bessa.

O assunto da pesquisa se mostra relevante quando números são analisados: no Brás, um bairro — formado pelos operários da cidade — de São Paulo que continha cerca de 76 mil pessoas morando na época e contava com quatro dos grandes teatros da cidade, tinha a presença de cerca de um terço da população nas cinco sessões que aconteciam nos finais de semana. “Era a televisão da época, em termos de alcance”, constatou Virginia. E, assim como é a televisão hoje em dia, o teatro musicado era o que lançava moda e determinava a tendência do que seria pautado nas conversas de rua e também quais seriam as músicas de sucesso.

Diante dessa avalanche de pessoas que costumavam frequentar as poltronas de teatros como o Brás-Politeama, Oberdan, Colombo e Mafalda, ficou a dúvida do porquê de tudo isso não estar registrado como história do teatro brasileiro e influenciador direto na cultura da época.

Teatro Colombo, localizado no Brás e fundado em 1908, tinha 1.968 lugares e era um dos principais palcos do bairro. Em 1966, já desocupado, foi destruído por um incêndio e demolido pouco tempo depois*
O teatro São José, que em 1920 foi demolido e o prédio Shopping Light ocupa o terreno, na região do Vale do Anhangabaú.*

De 1914 a 1934

O intervalo de anos foi delicadamente escolhido. Tudo começa em 1914 por um motivo mundial: A Grande Guerra. O conflito fez com que muitos grupos estrangeiros que estavam no Brasil se apresentando nos grandes teatros ficassem presos sem poder voltar aos seus países de origem. “Muitos artistas, sobretudo italianos, acabam ficando em São Paulo nesse período. Reformulam, criam novas companhias, se juntam com os paulistanos”, segundo Bessa.

Nos anos subsequentes o teatro se transformou amplamente, consolidando algumas companhias menores que passam a se apresentar nesses grandes teatros da cidade. Um exemplo é a companhia Sebastião Arruda, que antes mambembeava (viajava para as cidades com as suas peças) pelo interior do estado, e, nessa época conseguiu se fixar, atuando até hoje no cenário teatral.

A investigação pára em 1934, pois é quando essas companhias menores desaparecem e o teatro sofre uma grande reviravolta em sua estrutura. Tudo começa em 27, quando surge a gravação elétrica de som — antes, tudo era mecânico e a qualidade não se comparava ao som ao vivo do teatro —, permitindo que o cinema sincronizasse o áudio com a imagem. “O cinema começa ganhar a preferência porque é muito mais barato” e consegue garantir uma qualidade sonora semelhante ao teatro musicado ao vivo. “Isso acaba promovendo uma decadência de número de companhias que conseguem se manter em cartaz”, completa a pesquisadora.

Esticando os dados até 1934, foi possível medir o impacto não imediato nessas companhias que saem dos grandes palcos para mambembear ou desaparecem para dar lugar a espetáculos diferentes do que era comum antes.

A companhia Arruda, que atuou na cidade entre os anos de 1916 e 1925, foi uma importante protagonista dos palcos paulistanos. Imagem: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional (memoria.bn.br)

Para analisar o que aconteceu com o teatro musicado nesses anos, Bessa examinou os grandes jornais impressos diários da cidade no período desses 20 anos. Alguns tinham a coluna teatral em sua estrutura e anunciavam os espetáculos que aconteceriam e a companhia que iria se apresentar. A partir desses dados, foi possível montar um grande banco de dados capaz de filtrar várias informações e permitir análises sob diversos pontos de vista sobre o assunto.

Disputas no palco

O porquê de tantos dados terem desaparecido da historiografia foi desvendado pela pesquisadora. Ela identificou que na época existiam várias disputas em curso no mundo do teatro que favoreceram a falta de registros da época.

Eram três as grandes disputas.

A primeira delas envolve a ameaça à criação de uma identidade nacional. O caso envolvia a representação do caipira e do italiano nos palcos que simulavam cenas do cotidiano, mistura que acontecia nos meios sociais da cidade. Um outro problema eram as companhias italianas que continuavam apresentando operetas em italiano e atraía grande público. Com esse tipo de peças fazendo sucesso, era mais difícil criar um teatro genuinamente brasileiro — respeitando a língua nativa, os tipos sociais e a música brasileira.

A segunda disputa que se encontrava na época envolvia as políticas culturais e o lugar que o teatro ocupava nelas. Um exemplo desse embate envolve dois nomes da cultura: Mário de Andrade e Armando Belardi. O primeiro era um intelectual muito influente na cidade e “já tinha um projeto de construção de uma música brasileira e estava esboçando algumas ideias sobre um teatro brasileiro”, segundo Bessa. Enquanto Belardi era um maestro que organizava o agenciamento dos músicos paulistanos no Centro Musical de São Paulo — organização que protegia e ajudava os profissionais da cidade.

A grande questão é que Mário de Andrade não cita com tanta frequência o teatro musicado em seus estudos como faz com outros meios culturais: o cinema e as partituras. A hipótese que a pesquisadora cita em seu pós-doutorado é que esse silêncio se justifica pela percepção de ameaça à identidade nacional que Andrade encontrava nesses músicos ajudados por Belardi, por serem principalmente participantes de companhias líricas e porque cantavam óperas italianas.

“A terceira disputa que eu estou estudando é justamente essa questão dos gêneros teatrais e como que eles os hierarquizavam. Quais gêneros eram considerados dentro do teatro musicado mais importantes ou mais baixos.” O gênero mais popular, chamado teatro de revista — que tinha um conteúdo satírico, com alusões sexuais, duplo sentido e uma boa dose de humor — era desprezado pela crítica por fazer muito sucesso com o público e cair no ditado de “o povo só gosta de coisa ruim”. A opereta, por exemplo, era um gênero do teatro musicado aclamado pela classe média da época — que abarcava os jornalistas e intelectuais que faziam as críticas sobre esse tipo de arte — e considerado culto por sua proximidade com a ópera, mesmo algumas vezes enfrentando críticas dos eruditos.

O teatro Santa Helena, localizado na Praça da Sé, era um dos mais chiques da cidade.*

O “empurrãozinho” do rádio e do disco

Por mais que pouco registrados pela história, o teatro musicado do gênero teve uma grande influência na consolidação do disco e do rádio, que estava acontecendo simultaneamente à transformação desse gênero teatral. As parcerias feitas com os músicos fazem com que muitas das músicas que eram um sucesso nas ruas apareçam nos palcos, ou, as músicas das peças que agradavam os públicos, fossem para os discos e para as estações de rádio.

Isso funciona apenas por um tempo, porque “em um determinado momento, com a gravação elétrica, o disco começa a ser mais importante como veículo de divulgação do que o teatro porque é mais barato e porque a qualidade das gravações são muito boas”, conclui Bessa.

*As fotos foram retiradas da Internet e não contém créditos. As informações de tamanho do teatro estão na tese da pesquisadora.

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