No início da década de 1940, em meio ao processo de formação da metrópole paulistana, a cidade de São Paulo sediou a primeira penitenciária específica para mulheres no país. Por trás da institucionalização da punição feminina pelo Estado brasileiro, há um fato curioso: o estabelecimento permaneceu, por mais de três décadas, sob a gestão de um grupo religioso, a Congregação de Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor.
Em plena vigência do Estado Novo de Getúlio Vargas, com ampla concentração de poderes nas mãos do poder Executivo, qual seria a articulação de interesses por trás dessa união? O que levava as religiosas a quererem assumir uma instituição punitiva e o que levava o Estado a transferir esse controle?
Essas foram as questões centrais que a historiadora Angela Teixeira Artur se dedicou a estudar, de modo a reconstruir um pequeno capítulo da história que colaborou para o cenário atual do encarceramento de internas no país. As respostas não foram isoladas. De acordo com a pesquisadora, uma articulação de interesses foi pano de fundo para a administração das irmãs do Bom Pastor.
Sediada em uma casa, a primeira penitenciária feminina do país previa, em seu decreto de criação, que a pena das internas deveria ser executada com trabalho e instrução domésticos. A essa determinação, Artur chamou de “domesticação do regime de execução penal”.
“É uma insistência de que a mulher era um ser doméstico, do lar, e que, se ela cometeu algum desvio, foi porque não estava nesse lugar”, comenta Artur. “Dessa forma, a punição sobre ela deveria ser treinada de modo a voltar para o lugar de onde ela nunca deveria ter saído: uma casa, realizando as atividades domésticas.”
Ao ingressar nos presídios, a profissão das internas já estava pré-definida: se não tinham uma ocupação, as mulheres eram chamadas, automaticamente, de domésticas, buscando reforçar os papéis sociais, em especial no que dizia respeito à manutenção da mulher no espaço privado.
“A institucionalização reforça, mantém e, pior, torna mais rígida, contundente, e inflexível uma mudança de papéis sociais, que a é a domesticação das mulheres, a manutenção delas no local de onde elas não deveriam ter saído segundo essa lógica”, defende Artur.
A pesquisa da historiadora compôs sua tese de doutorado nomeada Práticas do encarceramento feminino: presas, presídios e freiras, defendida recentemente na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
Articulação de interesses
Instituída pelo Código Penal de 1940, a primeira penitenciária para mulheres contava com apenas sete internas. “Isso mostra que não é a quantidade de pessoas presas que determina se uma ação política vai caminhar em uma direção ou em outra, mas, sim, os interesses em jogo”, argumenta a historiadora.
Ela pontua que, durante o século 20, o Estado brasileiro operava uma grande tentativa de institucionalizar as relações humanas, em especial no que dizia respeito às camadas populares. A formação de um estabelecimento penitenciário específico para a população feminina foi exemplo disso.
“O Estado, diante da discussão de modernização do país, de institucionalização das práticas, não tem, a pronta entrega, um grupo de profissionais com experiência e que possa atender a essa demanda rapidamente”, explica Angela Artur. “As freiras se colocam como quem pode fazer isso. Há essa articulação de interesses”, completa.
Nessa intrínseca relação entre a origem das penitenciárias modernas e a questão religiosa — como caracteriza Artur —, os interesses por parte das irmãs do Bom Pastor não eram poucos. Para além do que pode parecer, o desejo das religiosas de converter as pessoas ao cristianismo praticante não era o único presente. Questões econômicas e políticas também foram essenciais.
“É uma ampliação de poderes e de status”, explica a pesquisadora. “A possibilidade de ter controle de uma instituição empodera a Congregação no sentido da influência, da diferenciação com outras congregações, de ter mais voz dentro da própria Igreja e poder se posicionar frente a ordens que vêm de cima.”
Outro interesse desse “empoderamento” da Congregação é que, no momento em que se estabelece um contrato com o Estado, as irmãs são remuneradas por isso e dispõem de uma renda fixa mensal, que permite planejamentos de organização do grupo religioso.
Em meio a uma instituição com forte presença masculina, como a católica, esse jogo de interesses também busca fortalecer as freiras. “Isso as empodera, porque elas têm um lugar definido dentro de uma instituição junto ao Estado”, diz a pesquisadora.
Posto à margem
Angela Artur tem se dedicado a estudar a institucionalização da punição de mulheres desde 2007. O trabalho da historiadora em sua dissertação de mestrado, por exemplo, deu início a essa investigação estudando o momento em que surgiram os primeiros presídios femininos. Além de disponível online, a pesquisa virou o livro Institucionalizando a punição: as origens do Presídio de Mulheres do Estado de São Paulo, lançado pela editora Humanitas.
O estudo, no entanto, não foi fácil. Ao falar de seus passos iniciais, a pesquisadora conta que a motivação principal era uma dúvida: “Por que mulheres que cometiam crimes ou atos de violência não eram alvo de informação?”. Essa escassez de uma bibliografia prévia sobre o assunto, em especial no Brasil, foi uma das dificuldades iniciais que a historiadora encontrou.
A isso se somou a resistência com a qual a Artur se deparou para acessar os arquivos das penitenciárias. Por anos, a administração afirmou que as fontes não existiam mais, até que, somente em 2014, Artur conseguiu autorização para acessar os arquivos internos e encontrou grande parte do material que solicitava acesso — com exceção das folhas que haviam se deteriorado com o passar dos anos.
A historiadora também priorizou a investigação nos arquivos da própria Congregação do Bom Pastor e chegou, inclusive, a pesquisar nos arquivos da Maison Mère, casa central do grupo religioso localizada na França.
Para além de todas as considerações alcançadas pela pesquisadora em seu trabalho, ela ressalta a constatação de que o assunto foi posto à margem da história brasileira: “Ao mesmo tempo em que o trabalho traz essa constatação incômoda de que a historiografia ignorou uma certa camada da sociedade, já que a população carcerária não foi um sujeito histórico privilegiado nas pesquisas de historiadores, você percebe que tem uma série de sujeitos que não foram mapeados.”
Gostaria de saber quais as primeiras mulheres agentes Penitenciárias do Brasil, se possível, encaminhar o resultado da pesquisa no meu e-mail por favor sirleyarrudamj@gmail.com