Ferramenta indica risco para condição patológica do luto

Pesquisa da FMUSP valida e adapta instrumento norte-americano para uso no Brasil e descobre novas aplicações

Imagem: Reprodução

A noção do luto como uma condição decorrente do falecimento de entes queridos é largamente conhecida, e assume inúmeras manifestações culturais ao redor do mundo. No entanto, segundo Tânia Maria Alves, pesquisadora do Instituto de Psiquiatria da USP, o cérebro é levado a um processo de luto a partir de perdas que não se relacionam necessariamente à morte – o luto pode ser desencadeado pela perda de um cargo, de uma parte do corpo, da juventude, da liberdade, do status, entre outras.

Menos disseminada ainda é a condição patológica na qual o luto pode se desdobrar, denominada luto complicado. De acordo com Tânia, ainda que a dor – presente em ondas, não constantemente – esteja presente em todos os tipos de luto, o diagnóstico diferencial pode ser feito com base no nível dela. Além disso, na tentativa de entender os motivos que levaram à perda, inicia-se um processo de busca que passa até mesmo por questões existenciais. Perguntas como “por que?”, “por que comigo?”, “por que foi assim?” são comuns nesse sentido. Tal procura, porém, pode se tornar tão intensa que afeta o cotidiano do enlutado. “Então quando esses sintomas, que são ditos normais, alcançam um nível que interfira no rendimento das atividades do dia-a-dia, esse é o ponto de corte.”

Por invocar diversas lembranças, esse processo de investigação mantém o vínculo do indivíduo com o objeto perdido – o que pode tomar grandes proporções em um quadro de luto complicado, de acordo com a pesquisadora. “Fazer um culto da pessoa falecida, um culto da dor, não conseguir jogar fora nada da pessoa, passar a usar as mesmas roupas, o mesmo corte de cabelo; até mesmo se sentir dentro da pessoa e, quem sabe, ser a própria pessoa por não aguentar a perda”, exemplifica.

Identificação do luto complicado

Em 2014, Tânia desenvolveu a tese Formação de indicadores para a psicopatologia do Luto, pela FMUSP. No texto, é citado que o luto complicado não pode ser diagnosticado até os seis primeiros meses após a perda, de acordo com o consenso diagnóstico. Considerando seu pouco reconhecimento e subtratamento, a pesquisa atua na tentativa de buscar maneiras de identificar, desde cedo, enlutados com risco de desenvolver o luto complicado.

Para isso, Tânia trabalhou na tradução, adaptação e validação do Texas Inventory Revised of Grief (Trig) – uma escala que, por meio de diversas perguntas, mede a presença e a intensidade dos sintomas do luto no paciente. Segundo ela, a análise do paciente é feita a partir de sua reação a afirmações como “cada vez que penso na pessoa falecida, choro muito”, “eu sinto os mesmos sintomas ou a mesma doença da pessoa falecida” e “eu pioro o meu rendimento a cada data que me lembra da perda”, além da intensidade de cada um desses sintomas. “Nós chamamos isso de sintomas psicopatológicos”, completa.

O Trig é uma expansão de 1981 do TIG (Texas Inventory of Grief), desenvolvido em 1977 nos Estados Unidos. Por isso, Tânia precisou levar em consideração a necessidade de uma adaptação transcultural da ferramenta para além da língua em si – que foi traduzida por dois psiquiatras bilíngues –, como fatores de vivência cotidiana, costumes, entre outros.

Segundo a pesquisadora, são inúmeros os instrumentos e tipos de medições. Ela cita alguns que avaliam a implicação da fé durante o processo de luto, outros que medem o desespero e a esperança, além daqueles que analisam o quão traumática pode ter sido a perda. Dada a escassez de instrumentos validados e disponíveis no Brasil, no entanto, a escolha de Tânia pelo Trig foi por sua maior abrangência. “Ele avalia o tempo de luto, o que a pessoa sente, o impacto do funeral, o impacto da relação. Então é um instrumento grande, os outros são menores e mais pontuais”, diz. Além de simbolizar uma possibilidade de inserção do instrumento na prática clínica, a pesquisa se propôs a investigar sua capacidade de diagnosticar o luto complicado no paciente – e, em caso positivo, quais são os principais sintomas dessa condição.

Para chegar aos resultados, o trabalho contou com 165 pacientes adultos, que foram entrevistados com o Trig. Como conclusão, o estudo constatou que a versão traduzida e adaptada da ferramenta é tão confiável como medida de luto quanto a versão original. O Trig também conseguiu distinguir pacientes com e sem luto complicado, tendo diagnosticado a condição em 69 dos participantes. Além disso, o nível educacional, a idade do falecido e do enlutado, a perda de filhos e a ocorrência de mortes inesperadas foram apresentados como fator de risco para o luto complicado.

A fim de identificar esses enlutados, a pesquisa chegou a um ponto de corte para o Trig – 104, de acordo com a lógica da escala. A obtenção desse ponto de corte possibilita uma referência para a presença ou não do luto complicado na análise dos resultados do instrumento. “O que mudou foi o ganho clínico para isso. Atingindo aquele número, você já sabe que é uma pessoa de risco”, diz. Assim, há um ganho na complexidade da triagem dos pacientes, evitando que alguns sejam direcionados ao psiquiatra sem necessidade. “Ele pode passar primeiro em qualquer especialidade, um clínico geral que está na Unidade Básica de Saúde. Se ele tiver conhecimento do instrumento, ele aplica; se o paciente não alcançar aquele número, ele pode ficar só por lá, mas, se ele alcançar, o médico sabe que deve indicar para um psiquiatra.”

Porém, mesmo com o avanço que simboliza, a questão do ponto de corte não é muito conhecida. “O luto já tem um estigma de não ser reconhecido como algo que atrapalha a saúde, o bem-estar. Imagine o ponto de corte”, diz Tânia. Para modificar o panorama, ela cita a importância de o assunto alcançar meios de divulgação, além de entrar no currículo médico. Outra questão é a necessidade de uma rede que dê suporte ao paciente nesse sentido. “Tem que ter duas mãos: uma mão que informe o paciente e outra que o receba quando ele quiser procurar alguém.”

De acordo com Tânia, a CID-10 (Classificação Internacional de Doenças atual) não reconhece o luto enquanto doença. “O luto é considerado um fenômeno normal”, diz. Porém, quando presente por mais de seis meses em crianças ou um ano em adultos, é reconhecido enquanto complexo do luto prolongado pela DSM-5 (Classificação das Doenças Médicas). Na CID-11, a inclusão do luto enquanto condição patológica está em construção. A pesquisadora ressalta a importância de se considerar suas peculiaridades. “Ela tem os sintomas próprios dela. O luto não é igual à depressão, à ansiedade, ao estresse pós-traumático. Não é. Os sintomas não são iguais, então temos que tratar de formas diferentes.”

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