À primeira vista, pode parecer que no Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST), que desde 1997 luta pelo direito à moradia e pela desconcentração de terras urbanas no Brasil, a presença feminina é escassa. Entretanto, a realidade é diferente: dentro das ocupações, eixo central de organização das famílias que aderem ao MTST, as mulheres são maioria e, inclusive, assumem um grande protagonismo nos clamores do movimento, sendo o gênero predominante nas coordenadorias dos núcleos e estando muito presentes na ordem de lideranças.
É exatamente nesse campo em que se insere a tese de Hamilton Harley de Carvalho-Silva, doutorando da Faculdade de Educação da USP: em vias de finalização, a pesquisa estuda os processos educativos e as práticas políticas que residem no cotidiano das mulheres militantes do MTST, analisando desde a maneira como as disposições pela luta coletiva foram adquiridas ao modo como a percepção de mundo dessas mulheres mudou após o envolvimento no movimento pela moradia.
Para dar conta da temática, Carvalho-Silva optou por realizar entrevistas em profundidade com diversas participantes do movimento, de modo a “traçar a biografia delas e da família, para tentar encontrar alguns elementos que pudessem explicar como se construíram essas disposições, a despeito de, na nossa sociedade, as mulheres serem ainda muito relegadas à esfera doméstica”.
Neste processo, o pesquisador notou que, mesmo a luta sendo “motivada por um problema concreto e objetivo: elas precisam de casa para morar e de um lar para cuidar dos filhos”, o movimento é muito heterogêneo e a inserção nele é uma questão não de preferência, mas de oportunidade. Segundo Carvalho-Silva, de maneira geral, são as duras condições de vida e o encantamento com a ideia de partilha que costumam levar as pessoas a se engajarem, mas que “a militância se constrói no processo e é a vivência da solidariedade que traz o pensamento de que somente na coletividade há a condição de superação das dificuldades”.
Neste sentido, é na atuação dentro do movimento e no contato com os demais participantes que, de acordo com Carvalho-Silva, as disposições para a luta são construídas, interiorizadas e transmitidas aos novos militantes e às novas gerações e, assim, as práticas educativas vão ganhando contexto e tomando forma. “O movimento tem uma ideia de que a própria participação é um processo formativo e, portanto, educativo, porque você vai lidar com novas situações e se apropriar das diferentes formas de pensá-las no convívio. É o aprender fazendo”, pontua o pesquisador.
Além disso, Carvalho-Silva comenta que as ocupações são estruturadas em núcleos, cada qual com uma função para a organização interna dos acampamentos e que, entre outros, um dos setores é responsável pela formação dos participantes, inclusive buscando parcerias com universidades e grupos voluntários que se disponham a promover palestras e cursos sobre variadas temáticas, por exemplo, “política, sustentabilidade, reciclagem, capoeira, mídia e contação de histórias”, de modo que os participantes possam apreender novos conhecimentos acerca da razão da militância e compreender o sentido da coletividade.
Sobre a questão da educação, é possível levantar ainda o modo como a militância afeta a formação das mulheres que participam do movimento: segundo Carvalho-Silva, algumas mudanças significativas no modo como estas percebem o mundo em que se inserem e à si próprias puderam ser notadas. Primeiramente, a atuação no MTST traz uma compreensão de que, em uma sociedade profundamente meritocrática, o esforço individual isolado é fraco e não apresenta-se de maneira tão transformadora quanto a luta coletiva, sobretudo para a população pobre. O pesquisador afirma que, como um desdobramento, muitas mulheres passam a entender o papel do sistema na manutenção das desigualdades, o que, segundo ele “deve mudar muito a questão do quanto você se sente forte, do quanto você se livra de uma espécie de culpa”.
Outra transformação importante refere-se à percepção acerca do lugar da mulher na sociedade. O movimento não é uma bolha e, portanto, o machismo também é reproduzido nos acampamentos, mesmo com o forte protagonismo feminino. Todavia, segundo Carvalho-Silva, “existe uma antena, um alerta para a reflexão”, e, com a desigualdade de gênero em pauta e o papel da mulher sendo reconhecido e, ao mesmo tempo, problematizado, as militantes sentem-se acolhidas e passam a se verem com espaço de fala, a entenderem seus direitos e a notarem-se como capazes de tomar decisões em prol do movimento e de suas próprias vidas, o que, por si só, já é um grande avanço, posto que em muitas esferas da sociedade nem isso é alcançado.
Por fim, o pesquisador aponta a percepção de que “a questão da moradia não se limita a ter uma casa” e que alojar alguém sem promover acesso à saneamento básico, educação, segurança, saúde e outros valores não significa cumprir com o direito à habitação.
Em um momento de incertezas e retrocessos, no qual percebe-se uma tendência de criminalizar os movimentos sociais, a luta de mulheres do MTST se apresenta como uma resistência ao lugar comum pensado para elas e a uma demonstração da força da organização política desse grupo, ainda muito renegada. “A perspectiva de futuro dessas mulheres é continuar lutando”, comenta Carvalho-Silva. “É um processo muito delicado de fragilização da democracia e retirada de direitos e é por isso que os movimentos coletivos devem se fortalecer, denunciar e enfrentar tudo isso”.
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