Relato de caso expõe os riscos de um aborto inseguro

As consequências de um abortamento sem acompanhamento médico e o seu rastro de problemas sociais

Tomografia da pélvis, em que é possível ver o corpo estranho na cavidade vaginal. Fonte: artigo Vulnerabilidade na adolescência: Um relato de caso de tentativa de aborto e violência sexual.

O aborto inseguro é uma realidade. Segundo a norma técnica do Ministério da Saúde, Atenção ao Abortamento, de 2011, a curetagem pós-aborto, a lavagem do útero, representa o terceiro procedimento obstétrico mais realizado em unidades públicas da rede de saúde. A legislação brasileira restringe a operação para casos de estupro ou risco de morte. No entanto, por questões familiares, religiosas, psicológicas e culturais, muitas, em situação de vulnerabilidade social principalmente, optam por métodos inseguros de abortamento.

As consequências deste tipo de ação, de acordo com relatório da OMS, são 47 mil mulheres mortas e 5 milhões que sofrem alguma incapacidade, no mundo todo, anualmente. As estatísticas colocam, portanto, o aborto como um dos maiores problemas de saúde da humanidade. Para se ter uma perspectiva mais próxima, um relato de caso, publicado no número 27 da revista da USP Journal for Human Growth and Development, ilustra com detalhes as sequelas que um aborto inseguro podem causar no corpo de uma jovem.

Vulnerabilidade na adolescência: Um relato de caso de tentativa de aborto e violência sexual apresenta as etapas do atendimento de uma moça de 16 anos, natural da cidade de São Paulo, que havia realizado uma tentativa de aborto. “Ela estava com uma dor abdominal há mais de 10 dias. Sem mudança de cor associada às fezes, mas com alteração intestinal e urinária. Ela tinha febre e usava antibiótico havia 6 dias. Negava febre, mas o exame físico indicava o contrário”, conta a médica da FMUSP, que participou do atendimento, e co-autora do artigo, Isabel Cristina Esposito.

Os exames de tomografia computadorizada revelaram a presença de um corpo cilíndrico na cavidade vaginal. No terceiro dia de internação, uma cirurgia removeu com sucesso o que se revelaram três peças de metal e plástico. “A gente não conseguiu identificar o que eram as peças”, comenta Adna Thaysa da Silva, mestranda da FMUSP, autora do relato de caso.

Segundo Esposito, a paciente já vinha com um quadro infeccioso anterior. “Após a cirurgia, houve uma piora na infecção. O antibiótico teve de ser trocado por um mais potente. Ela foi encaminhada para uma unidade de terapia intensiva para aumentar o cuidado”, relembra Isabel. “Com o aumento de processos inflamatórios, acaba aumentando a possibilidade de surgirem trombos, que podem se deslocar e, geralmente, vão para o pulmão, como neste caso. Ela recebeu, então, anticoagulantes e, a partir daí, evoluiu bem.”

A jovem paulistana possui um passado de violência sexual. “A paciente passou por uma equipe multiprofissional. Dentro desse acompanhamento, foram identificados registros de que já havia um histórico de abuso sexual de parceiro materno. No caso, o namorado da mãe”, relata da Silva. Depois de 42 dias de internação, a paciente pôde, enfim, deixar o hospital. Passados 20 dias, ela retornou para o acompanhamento. “No retorno, chegamos a perguntar para a paciente se ela ainda tinha relação não consentida. Ela afirmou várias vezes que não, e chegamos a perguntar para a mãe, se o antigo parceiro ainda frequentava a casa. A mãe disse que não. Em princípio, aquilo que tinha ocorrido no passado, não estava mais acontecendo”, afirma Isabel.

As peças retiradas da paciente. Ao todo, o cilindro media 5,5 x 2,8 x 2,8 cm. Fonte: Vulnerabilidade na adolescência – Um relato de caso de tentativa de aborto e violência sexual

Um elemento notável deste caso é o fato de que não houve confirmação de gestação da jovem. “Ou porque o aborto já havia ocorrido ou talvez, porque a paciente já tivesse um histórico de violência. Muitas vezes, as pacientes acabam introduzindo um corpo estranho, por causa de um  atraso na menstruação, porém quando não havia de fato uma gravidez. Não foi encontrado nenhum sinal de restos fetais ou de restos embrionários”, explica a médica da FMUSP. “Nós temos o abortamento espontâneo e o abortamento provocado. Mas quando a gravidez não é planejada, impacta justamente nessas duas questões. Porque essa mulher, já sabidamente, procura o pré-natal mais tarde. Muitas vezes, por não estar esperando, ela pode não estar em uma fase de saúde ideal para iniciar uma gravidez. Todos esses fatores aumentam o risco de abortamento.”

No retorno, 20 dias depois da alta hospitalar, foi oferecida à paciente métodos contraceptivos. Porém, ela não aderiu a nenhum. “Ela afirmava que tinha relações sexuais consentidas já há 2 anos, ou seja, desde os 14 anos de idade”, comenta Isabel Cristina. “As pacientes que têm histórico de violência, e quanto mais precoce isso ocorre, maior o dano, principalmente relacionado ao seu psíquico, ao seu autocuidado e a auto-imagem, são pacientes que têm maior dificuldade de adesão à prevenção.”

O aborto é uma problema sistemático. Sua área de influência tangência, portanto, diversas questões relacionada à vida da mulher, desde sua posição na sociedade patriarcal até questões práticas da maternidade. O Brasil possui, ainda, uma legislação pouco flexível quanta a prática do aborto, o que eleva o risco de mulheres, sobretudo em situação de vulnerabilidade social, à recorrerem a métodos inseguros. Uma rede intrincada de fatores culturais, religiosos, sociais, enfim, de fatores que despertam paixões e adormecem a razão, bloqueia o caminho para leis mais permissivas sobre o aborto.

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*