Pesquisa analisa o acesso de surdos aos cursos superiores de formação de professores de Libras

Com pouco mais de 10 anos de existência, os cursos de Letras-Libras e Pedagogia Bilíngue não têm garantido uma entrada consistente de candidatos surdos

Arte: Victória Martins

Há pouco mais de uma década, a promulgação da Lei 10.436, de 2002 e do Decreto nº 5.626, de 2005 garantiu o reconhecimento da Libras como a língua da comunidade surda brasileira, além de assegurar aos surdos o direito à uma educação bilíngue. Com a necessidade de se preparar profissionais para o ensino da Libras, foram criados os cursos de Letras-Libras e Pedagogia Bilíngue, que deveriam, se cumpridas as determinações, ter boa parte das vagas preenchidas por surdos.

Em sua tese de doutorado, defendida em 2016, na Faculdade de Educação da USP, a pesquisadora Kate Oliveira Kumada analisou 80 editais e 217 documentos anexos, como provas, vídeos em Libras e listas de aprovação, referentes aos cursos superiores de formação de professores da língua oferecidos por 25 instituições federais, entre 2006 e 2015. No processo, ela caracterizou os processos seletivos, analisou as condições de acessibilidade oferecidas e estudou a disposição de vagas para surdos, na perspectiva de checar como se deu a oferta destas graduações e se o acesso de surdos foi consistente no período considerado.

Acessibilidade e prioridade

Segundo Kate, as instituições apresentam uma grande dificuldade em preencher as vagas dos cursos de Letras-Libras e Pedagogia Bilíngue com candidatos surdos devido à falha na oferta de condições de acessibilidade e no fornecimento de um acesso prioritário aos surdos.

De acordo com o Decreto 5.626, “as instituições federais de ensino devem garantir obrigatoriamente às pessoas surdas o acesso à comunicação, à informação e à educação nos processos seletivos”. No entanto, segundo a tese, 61% dos editais não apresentaram versão traduzida à língua de sinais, enquanto 6% realizaram uma tradução não integral. Kate notou, ainda, que apenas 24 editais permitiram ao candidato solicitar uma correção diferenciada nas provas de redação, enquanto somente 23 previam a interposição de recurso no caso desta ter sido incorreta, postura que contraria o decreto, já que os surdos aprendem o português como segunda língua.

Kate explica que muito dos problemas na questão da acessibilidade se devem à grande burocratização que acompanha a garantia destas condições e à postura das instituições de  promover um “empoderamento do médico em relação à uma coisa que não é de domínio dele, e sim, da pedagogia”. Assim, são exigidos laudos médicos que comprovem o acesso à uma correção diferenciada ou a um tempo adicional na realização da prova que, muito específicos, acabam indeferindo grande parte das inscrições e solicitações de condição especial, excluindo, no processo, muitos candidatos surdos.

Já na segunda questão, Kate percebeu que 43% dos editais não deram prioridade alguma; 39% entenderam a medida como uma reserva de vagas; 16% usaram o método da primazia, ou seja, primeiro entrariam surdos e, se sobrassem vagas, entrariam os ouvintes e 2% não discriminaram como dariam a prioridade.

A pesquisadora analisou os editais para checar se a medida de prioridade de acesso à alunos surdos estava sendo respeitada. (Fonte: Tese de Kate Oliveira Kumada)

Ao analisar a questão da reserva de vagas, Kate estudou o cruzamento entre o Decreto 5.626 e a Lei 12.711, que versa sobre as políticas de ações afirmativas. Aqui, notou que, dos 80 editais, apenas 31 cumpriram ambas as determinações, e destes, 11 pediam para que o candidato escolhesse entre se candidatar como surdo, negro ou índio, questão que revela a dificuldade das universidades em reconhecer que as pessoas podem estar em múltiplas condições de desvantagem e assim, explica Kumada, “devem, nesse tipo de reserva, ser duplamente contemplados”.

O professor surdo

“As crianças surdas, quando vão para a escola, só tem professores ouvintes. E geralmente, na própria proposta de educação inclusiva, elas são as únicas crianças surdas da escola”, pontua Kate. Ao entrar em contato com um professor surdo, o aluno estabelecerá trocas de mesmo nível, baseadas em experiências visuais e em diversas outras questões particulares à cultura surda, podendo se encontrar dentro de um universo de ouvintes. Assim, revela Kate, o espelhamento em outra pessoa que compartilha sua identidade é de extrema importância para processos de escolarização destas crianças.

Além disso, considerando que “para os surdos, a Libras é a primeira língua, por onde o aluno vai construir todas as suas estruturas mentais e cognitivas”, o professor surdo, que tem com a língua de sinais uma relação semelhante à que uma pessoa tem com seu idioma nativo, estabelecerá com esse aluno uma relação de aprendizado diferenciada, trazendo especificidades da surdez que um professor ouvinte não poderá trazer, por não pertencer à esta comunidade.

Alterações no quadro

Para a pesquisadora, a formação de professores de Libras carece, primeiramente, de incentivo. Segundo seu levantamento, são poucas instituições públicas que oferecem os cursos e a necessidade primária é a de as universidades se mobilizarem para a abertura de mais turmas, em todos os estados do país, especialmente do curso de Pedagogia Bilíngue, que forma o professor para atuar especificamente na educação básica e que, atualmente, está em apenas duas instituições do Brasil.

Em relação às instituições que já tem os cursos estruturados, a maior necessidade é a de repensar seus processos seletivos, acerca do tipo de prova que está sendo aplicada e de outros equívocos que, segundo Kate, fizeram com que o acesso de surdos aos cursos fosse reduzido. “O processo seletivo é a porta de entrada”, pontua Kumada. “Claro que depois nós temos novos desafios em relação ao ensino superior mas, se a primeira porta está fechada, as outras estão inacessíveis”.

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