Para além dos muros do cárcere: a vida das encarceradas

Mulheres presas são vulnerabilizadas e enfrentam problemas que se estendem do assédio à falta de acesso a artigos de higiene. Esses refletem a perpetuação de violências de gênero, raça e classe

Mulheres atrás das grades. [Imagem: Canva]

Por Carolina Borin Garcia, Isabel Vernier, Júlia Castanha e Larissa Leal

O Brasil tem 919.651 pessoas privadas de liberdade, ocupando a terceira posição no ranking de maior população carcerária do mundo em 2022, segundo os dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Observando apenas a situação das mulheres, de acordo com o mesmo levantamento, o país apresenta a quarta maior população carcerária feminina do mundo, com cerca de 49 mil mulheres presas. 

De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), de 2018, as mulheres negras correspondem a 68% do cárcere; enquanto as brancas, 31%; amarelas, 1%; e as indígenas, menos de 1%. Mas, esses dados podem variar de estado para estado. Além disso, 50% das presas se encontram na faixa etária de 18 a 29 anos, idades que correspondem a 21% da população brasileira.  

O sistema carcerário brasileiro foi feito por homens para homens e existe uma busca constante para encaixar, sem qualquer tipo de reformulação, as mulheres nesse sistema. Como são minoria, quando comparadas aos homens (867 mil), elas acabam passando despercebidas na prisão. As mulheres presas têm necessidades e demandas diferentes das masculinas e é preciso ter uma compreensão disso, para que o sistema prisional feminino se adeque e possa ajudar no processo de reintegração delas à sociedade. 

Katherine Martins, coordenadora do projeto Nova Rota, afirma: “O fenômeno do encarceramento feminino é muito recente. Então, a gente vê que os presídios femininos não foram criados nem por e nem para mulheres e, assim, você acaba não conseguindo atender a demanda de nenhum ser humano. Mas, especificamente com relação ao público feminino o presídio é um ambiente que raramente existe de forma adequada”. O programa foi idealizado por ex-alunos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e trabalha com bolsas de estudos para pessoas marginalizadas, incluindo aquelas em cárcere.

Projeto Nova Rota. [Imagem: Instagram @projeto.novarota]

Outro problema enfrentado pelas mulheres encarceradas é a superlotação. Devido a esse problema muitas mulheres precisam ser levadas para presídios mistos, já que faltam vagas e existe um número pequeno de prisões exclusivamente femininas no país. Mesmo que o relatório do CNJ tenha apontado que, entre 2000 e 2014, a quantidade de mulheres encarceradas aumentou em 567%, enquanto a masculina, 220%,  dados do Infopen, em 2014, mostraram que somente 7% das prisões brasileiras eram exclusivamente femininas; enquanto 17% eram mistas e 75% masculinas. 

Dessa forma, uma parcela significativa das presas passam a conviver com homens dentro dos presídios, o que não deveria ocorrer idealmente já que o artigo 27, § 2º da  Lei de Execução Penal garante que nos presídios femininos só é permitida a presença de trabalho de pessoas do sexo feminino. Nesse cenário, as encarceradas tornam-se muitas vezes vítimas de assédio sexual e violências físicas, como estupro.

Ainda de acordo com o Infopen, mais de 60% das mulheres foram detidas por causa de delitos envolvendo tráfico de drogas, a maioria atuando junto com o companheiro ou família. Segundo a reportagem Por amor, dinheiro e poder, mulheres recorrem ao tráfico e lotam cadeias, publicada pela Folha de S.Paulo, o motivo é “amor, dinheiro e poder”. Elas se colocam em risco participando de atividades do tráfico, segundo levantamentos, a maioria atua como “mula” de drogas, sendo que em alguns casos elas são coagidas a fazer o transporte ou desconhecem o que estão levando.

Em 2006, a “Lei das Drogas” entrou em vigor e foi responsável pelo endurecimento das penas por tráfico de drogas e não apresenta definição da quantidade que diferencia um usuário de um traficante. No livro, Prisioneiras, Dráuzio Varella conta que antes da lei entrar em vigor, apenas 13% dos presos estavam ali por tráfico, mas quando o livro foi escrito (2017), o número aumentou. 60% das mulheres presas no estado de São Paulo tinham sido detidas por tráfico de drogas.

Gráfico sobre as principais causas que as mulheres são presas. [Imagem: Carolina Borin Garcia]
A médica sanitarista e professora do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, Silvia Maria Santiago, pontua um aspecto importante sobre o perfil das encarceradas no Brasil: “Uma quantidade muito grande de mulheres são chefes de família e aí gera-se uma vulnerabilidade emocional para a mulher e para as pessoas que dependem dela, muito frequentemente crianças”. Ainda segundo a professora, esse processo de vulnerabilização se intensifica ainda mais quando se pensa que essas mulheres durante o cárcere ficam em sua grande maioria desocupadas e poucas são as oportunidades de qualificação dadas a elas durante e após a prisão.

Como funciona o sistema?

Em 1984, foi adotada a Lei de Execução Penal (LEP) que tem como foco a ressocialização e não a punição do indivíduo. No artigo 1º ela afirma: “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”.

Cabe ressaltar que homens e mulheres não podem receber penas diferentes baseadas no sexo deles e somente o crime cometido deve ser considerado. Em 2019, o pacote anticrime reescreveu o artigo 75 do Código Penal e aumentou de 30 para 40 anos a pena máxima a que um indivíduo pode ser submetido. Caso haja pena superior, elas são unificadas para ficar no tempo máximo. Em maio de 2021, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara (CCJ) aprovou a tramitação de projeto que aumenta de 40 para 50 anos a pena máxima. O texto agora está em tramitação na Câmara para ser debatido. Mas as condições em que os presos são mantidos dificulta esse processo de ressocialização e torna-os mais propensos à reincidência.

Mãos com unhas pintadas algemadas. [Imagem: Canva]

O viver através das grades

A vida dentro do cárcere é repleta de nuances, sobretudo quando se é mulher. O sistema prisional reproduz, muitas vezes, de modo ainda mais escancarado, os preconceitos e as opressões que permeiam o tecido social e estruturam a sociedade brasileira. Nesse sentido, em um ambiente no qual a desumanização prevalece, as mulheres diariamente enfrentam a insalubridade e condições precárias do cárcere, o que distancia este da sua principal e ideal função: a reinserção do indivíduo na sociedade, e não a sua punição. 

Dentre as condições que as mulheres encarceradas enfrentam está a dificuldade material relacionada a higiene pessoal e a manutenção de sua saúde dentro dos presídios. Recentemente, a questão da pobreza menstrual (situação vivenciada por corpos que menstruam e não tem infraestrutura e recursos para cuidar plenamente desse período) ganhou uma significativa visibilidade após o veto do presidente Jair Bolsonaro à distribuição gratuita de absorventes. Quando se trata das mulheres em cárcere, esse é um problema que também se faz presente. 

“Para o Estado e a sociedade, parece que existem somente 440 mil homens e nenhuma mulher nas prisões do país.  Só que, uma vez por mês, aproximadamente 28 mil desses presos menstruam” 

Heidi Ann Cerneka, coordenadora da Pastoral Carcerária Nacional para as Questões Femininas, em artigo de setembro de 2009

Segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), 1 em cada 4 mulheres e meninas brasileiras entre 12 e 19 anos já faltaram às aulas por não poder arcar com os custos de um absorvente. Essa realidade de inacessibilidade permanece no contexto do cárcere e, assim, as mulheres presas ficam a mercê do Estado, que, raramente, fornece uma quantidade distinta de papel higiênico, por exemplo, para homens e mulheres, o que seria necessário a priori já que as mulheres o utilizam para as duas necessidades; ou, ainda, uma quantidade suficiente de absorventes, já que geralmente cada mulher recebe apenas o equivalente a um absorvente por dia. Essa realidade destoa daquilo previsto na legislação, uma vez que, de acordo com o artigo 12 da Lei de Execução Penal, prevê-se a assistência ao preso e ao internado, isto é, “fornecimento de alimentação, vestuário e instalações higiênicas”.

A falta de distribuição também se dá pela superlotação, que impede que todas as mulheres recebam o material necessário para atender suas necessidades básicas. Segundo Relatório da Defensoria Pública, considerando penitenciárias visitadas nos últimos dois anos (de 2020 a 2022), 81,48% das unidades prisionais do estado de São Paulo estão superlotadas.

Diante da escassez de tais recursos, as presas dependem daquilo que as visitas conseguem trazer para elas. Na ausência destas, os materiais básicos de higiene ― que deveriam ser obrigatórios visando garantir a dignidade da mulher encarcerada ― tornam-se elementos de troca dentro dos presídios. Em casos extremos e que, infelizmente, são frequentes, miolos de pão, papel, papelão são utilizados para substituir o absorvente feminino, ainda que esses elementos possam causar problemas graves de saúde nestas mulheres. 

É nesse contexto que projetos como o Nós Mulheres foram criados, de modo a ocupar um vazio deixado pelo Estado brasileiro quando se trata da pobreza menstrual das mulheres em cárcere. Juliana Garcia, fundadora da iniciativa e também advogada criminalista, conta que o projeto trabalha a base de doações, que quando arrecadadas, são entregues a integrantes da Pastoral Carcerária ― que podem entrar nos presídios tendo em vista o direito à prática religiosa e funciona como uma verdadeira rede de apoio para os presos ― e distribuídos às mulheres encarceradas. “O objetivo principal é levar, além dos produtos físicos, empatia e dignidade para essas mulheres presas”. 

Compra de absorventes para doação pelo projeto Nós Mulheres. [Imagem: @_nosmulheres]
Fazer essa distribuição de produtos básicos, mesmo que vise suprir um dever a princípio do Estado e ser algo garantido legalmente no país, enfrenta algum tipo de resistência na sociedade brasileira. “Você pensar friamente, realmente é uma questão delicada”, afirma Juliana. 

A advogada conta que existe uma indagação comum quanto ao público que o projeto atende. Esse é um dos reflexos da perspectiva punitivista, que pensa o cárcere como um espaço que tem a função de punir os indivíduos pelos crimes cometidos, que ainda têm  aderência por diferentes setores da sociedade civil. “As ações governamentais muito frequentemente refletem a forma como a sociedade pensa um determinado grupo social e nesse caso isso reflete muito como a sociedade tem pensado as classes menos empoderadas. A sociedade admite que elas sejam encarceradas”, pontua Silvia. 

Discursos como o de que “bandido bom é bandido morto” ou que “direitos humanos são para humanos direitos” representam essa perspectiva, que revelam uma certa desumanização praticada contra os corpos encarcerados vistos apenas como uma parte de uma grande estatística e, não mais como cidadãos dignos de direitos e deveres. “Acho que são os muros do cárcere, colocados  ali realmente para esconder o que se tem lá dentro”, conta a advogada.

“É uma precariedade geral, é um ciclo de abandono e de ausência de suprimentos básicos”, relata Juliana sobre a condição vivenciada pelas encarceradas. Para além da questão da pobreza menstrual, tem-se um cenário de superlotação, que foi ainda mais evidenciado durante a pandemia de Covid-19. Enquanto milhares de brasileiros praticavam o distanciamento social para evitar a contaminação pelo vírus, a população encarcerada vivia sob condições precárias e com a ausência de políticas públicas que garantissem alguma segurança

No entanto, o desrespeito às necessidades básicas não é tudo ao que as mulheres em cárcere são submetidas. Além de estarem separadas de suas famílias, as mulheres recebem um número significativamente menor de visitas do que os homens que se encontram em reclusão, evidenciando o problema de gênero que permeia até mesmo as relações prisionais.  “Quem visita mulheres são mulheres. Diferente das visitas nas penitenciárias masculinas que você passa na frente e vê aquela aquela métrica [fila] de mães, de esposas, namoradas, filhas visitando os seus parentes homens”, relata Juliana.

Como citado, três em cada cinco mulheres que se encontram no sistema prisional brasileiro respondem por crimes ligados ao tráfico. Explicita-se, assim, como elas são tratadas com desprezo dentro do sistema prisional: parceiras de homens encarcerados não têm vergonha de visitá-los na detenção, enquanto muitas famílias se sentem desconfortáveis em visitar uma mulher na cadeia, que recebem o título de “mulher do traficante”.

Gravidez e maternidade durante o cárcere

Dráuzio, em videorreportagem do O Globo, relata sobre a alimentação das detentas, que se resumem a alimentos de pouco valor nutricional, mas com grande probabilidade de aumento de peso não saudável. Essa informação é de grande relevância quando leva-se em consideração as detentas gestantes que raramente têm acesso ao pré-natal e outros exames durante a gestação. 

Além disso, o período pós-parto é bastante difícil tanto para a mãe, quanto para o bebê. “A presa que opta por ficar com a criança é encaminhada para a penitenciária feminina de Santana onde ela vai ficar junto com a criança em cárcere fechado durante três meses.”, explica Inês (nome fictício), agente penitenciária que trabalha em um presídio feminino no estado de São Paulo.  A mulher que prefere não assumir a maternidade retorna à penitenciária e a criança é encaminhada para o juizado. Inês também ressalta que a maioria das mulheres não ficam com a criança após o parto.

A rotina de um presídio feminino

Inês contou com detalhes como funciona a rotina de uma penitenciária feminina. O dia começa às 8 horas da manhã, quando as celas se abrem e as presas são liberadas para ir ao pátio. Às 8h30, as celas são fechadas e as mulheres que optaram por não saírem para o banho de sol são trancadas. Elas tomam o café da manhã e, para o almoço, todas devem voltar às celas novamente. 

Servido o almoço, as encarceradas são liberadas, recebem o lanche da tarde e, à noite, o jantar. No entanto, às 16 horas, todas retornam para as celas e ocorre a contagem das presas. A rotina se repete no dia seguinte.

Algumas mulheres também trabalham durante o cárcere. A cada três dias de trabalho, diminui-se um dia da pena da encarcerada. Além disso, a presa também recebe pelo trabalho, mas o dinheiro ganho é escasso. “São indústrias que, de repente, precisam de mão de obra barata e acabam terceirizando esse serviço para o presídio para as presas fazerem”, conta Inês. “Tem que produzir muito para ganhar pouco. Mais ou menos R$ 200,00 a presa que trabalha bastante consegue pegar”. Mesmo sendo previsto por lei, apenas 23,9% das presas são remuneradas pelas tarefas, segundo pesquisa do Instituto Igarapé. 

Nos finais de semana, ocorre a visitação. Os raios (espécies de unidades onde as presas são trancadas) pares e ímpares são revezados entre os sábados e os domingos. Para visitar uma encarcerada é preciso ter uma espécie de carteirinha de visitação. Esse também é o único momento em que os filhos podem visitar suas mães desde que acompanhados por outro responsável que possua a permissão para visitação.

Os corpos trans no cárcere

As mulheres encarceradas transexuais vivem uma situação de dupla vulnerabilidade, justamente por serem mulheres e assumirem a transexualidade, somando isso também aos preconceitos vinculados a raça e classe. Em 2020, o Brasil assumiu o posto de país que mais mata transexuais no mundo, contabilizando o total de  175 assassinatos de travestis e mulheres transexuais. Essa realidade, infelizmente, também se repete no mundo do cárcere.

No ano de 2014, pode ser notado algum avanço diante desse cenário no contexto do sistema prisional. Neste ano, foi publicada uma Resolução Conjunta do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Essa  medida garante direitos básicos à população trans privada de liberdade, como o uso de nome social, a escolha sobre vestuário e cabelos conforme identidade de gênero e a continuidade de tratamento hormonal. Dessa maneira, foram reafirmados princípios e garantias constitucionais como o artigo 1º, inciso III, que prevê “a dignidade humana como um princípio fundante da República”; e o inciso XLIX do artigo 5º, o qual determina que “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”. 

Porém, observa-se que a prática e realidade concreta apresenta alguns retrocessos. De acordo com relatório produzido pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, em fevereiro de 2020 concluiu-se que as normativas previstas pela Resolução não estavam sendo atendidas. Além disso, a pesquisa aponta casos frequentes de violência física, sexual e psicológica cometida por encarcerados e funcionários contra presos transexuais. Diante disso, percebe-se que a cisnormatividade ― sistema que coloca os gêneros homem e mulher em uma posição privilegiada e como norma social, o que marginaliza e exclui pessoas trans ― prevalece, acompanhado da prática de inúmeras violências diante dos corpos femininos, sobretudo, quando se trata de mulheres transexuais.

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