Pessoas trans, travestis e não-bináries encontram maneiras para viver e sobreviver em um mundo no qual a própria saúde as patologiza

Estudo da Faculdade de Saúde Pública pesquisa como pessoas trans, travestis e não-bináries vivem e sobrevivem através do cuidado fora de unidades de saúde

Pessoas travestis, trans e não-bináries desenvolvem uma rede de cuidado por falta de acesso à saúde - Foto: Isabel Vernier

Um estudo etnográfico realizado pelo psicólogo Michel Furquim para a Faculdade de Saúde Pública da USP investigou como pessoas trans, travestis e não-bináries criam um mundo possível de se viver e sobreviver mesmo fora dos espaços de saúde. Tal grupo é visto de maneira patologizante pela ciência e, por isso, não possuem acesso a tratamentos necessários para seu bem-estar, ou enfrentam grande dificuldade para obtê-los.

O pesquisador baseou o estudo no termo de cosmopolítica cunhado por Isabelle Stengers, que explica como o fazer científico é capaz de construir mundos e questiona a invalidação de saberes que não são baseados na ciência moderna. Assim, o mestre utiliza suas experiências com seus companheiros e companheiras de pesquisa, pessoas trans, não-bináries e travestis, para defender que seus meios de existirem no mundo devem ser entendidos como uma forma de cuidado, mesmo que não sigam as convenções de saúde institucionalizadas.

“Nessa perspectiva, o cuidado extrapola a questão da saúde, porque o cuidado é inclusive uma forma de sobreviver, mas também é criar uma vida boa para viver”, explica Furquim. Assim, a conversa, a escuta e as relações de apoio são cuidados. 

Através de seu trabalho voluntário no Centro de Referência e Defesa da Diversidade e no grupo de dança Transamigas, o mestre explica que toda a ciência foi feita com e para pessoas cisgêneras. Assim, pessoas trans e não-bináries são vistas como desviantes e, consequentemente, suas necessidades não são legitimadas. 

O estudo também expõe a dificuldade de acesso à hormonização por parte das pessoas trans. Alguns dos companheiros de pesquisa do psicólogo, por exemplo, procuraram endocrinologistas, mas estes não atendiam pessoas trans por não saberem as doses corretas para realizar o uso de hormônio de forma segura em pessoas transsexuais. 

“Começamos a perceber que dentro de um serviço de saúde institucionalizado e com profissional de saúde, não necessariamente você está fazendo um processo mais seguro. Porque se esse profissional não tem a capacitação e esse conhecimento, iniciar a hormonização nessa pessoa será quase como um experimento”, esclarece Furquim.

Muitas pessoas em situação similar passam a buscar informações na internet para realizar a hormonização por conta própria. O mesmo ocorre com mulheres trans e travestis que buscam colegas para aplicar silicone industrial em seus corpos, procedimento de alto risco. Ainda que a decisão seja questionável do ponto de vista da ciência, a pesquisa mostra que essa é, muitas vezes, a única maneira dessas pessoas viverem em corpos confortáveis e condizentes com quem são. 

Assim, mesmo com a falta de respaldo médico, essas pessoas são capazes de criar uma existência possível. Porém, o conhecimento desenvolvido pelo grupo como forma de cuidado, de se reconhecerem e serem reconhecidos não é ratificado pela ciência e é invalidado. Mais que isso, muitas dessas pessoas são violentadas dentro de espaços de saúde e não são atendidas dignamente.

A solução não é de curto prazo. Furquim defende uma mudança através da legitimação, respeito e maior participação de pessoas trans e não-bináries. Desde o ambiente escolar à faculdade, transgeneridade e sexualidade devem ser abordados para acabar com a noção patologizante de pessoas transsexuais, criando profissionais não violentos e uma existência mais segura para o grupo.

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