Partir da prática para a teoria pode otimizar uso de recursos e evidenciar diversidade na ciência

Pesquisadores utilizam o desenvolvimento de teorias na área ecológica para discutir a construção do conhecimento e a natureza da ciência enquanto atividade social

A ciência é construída a partir de conexões entre conhecimentos, muitas vezes derivadas de demandas práticas. [Imagem: Reprodução/Journal of Marketing Management/CC BY 4.0]

No campo da ciência, é famosa a seguinte frase: “Se os fatos contrariam a teoria, os cientistas não mudam os fatos, mudam a teoria”. Muito utilizada para explicar que a ciência não é construída com base em simples opinião, sem considerar as evidências do mundo natural, a frase reflete uma visão específica sobre a construção do conhecimento científico. Nela, as teorias teriam uma estrutura pré-definida, que parte de afirmações evidentes pelo sentido ou pela análise lógica — chamadas axiomas — para derivar conclusões sobre o mundo. Se o observado no mundo contraria uma conclusão prevista pela teoria, a teoria é considerada incorreta ou inadequada.

Entretanto, pesquisadores do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP) defendem que nem todas as ciências se organizam dessa maneira. Para eles, algumas áreas misturam diferentes elementos, práticas e necessidades em uma abordagem pragmática, e considerar essas características contribui para direcionar investimentos de recursos e identificar lacunas no conhecimento.

O biólogo Bruno Travassos-Britto, pós-doutorando no IB-USP, dedicou anos de estudo à pesquisa em Ecologia e acompanhou de perto o debate sobre quais seriam as leis da natureza nessa área, que é formada pela mistura de diferentes campos científicos e estuda as relações de seres vivos com o meio ambiente e como elas definem padrões de distribuição de espécies. “Cheguei à conclusão de que considerar que não existem teorias em uma área como a Ecologia é uma falta de entendimento sobre as várias faces que uma teoria pode ter”, afirma o pesquisador.

Ao longo de sua carreira na ciência, o biólogo Bruno Travassos-Britto teve contato com diferentes práticas de construção de conhecimento, de experimentos em campo a modelagem computacional e análises teóricas sobre filosofia da ciência.

Segundo Bruno, encarar teorias como construções fechadas e estáticas faz com que boa parte do que cientistas fazem no dia a dia, especialmente em áreas mais aplicadas como conservação e restauração ambiental, não possa ser considerado ciência.

De acordo com o pesquisador, quando as demandas de conhecimento são dadas por problemas imediatos, que precisam de soluções interdisciplinares, como é o caso das mudanças climáticas, é preciso reunir elementos de diferentes origens: química, física, biologia, ciências sociais. Por sua vez, tais elementos nem sempre compartilham leis gerais de funcionamento e, muitas vezes, têm princípios contraditórios ou complementares. Nesses casos, explica Bruno, “uma teoria é construída e alterada aos poucos, lapidada com base nos dados, nas necessidades de cada pesquisa e em vários outros aspectos políticos, econômicos e sociais. A teoria está sempre mudando”.

Mas, diante de necessidades tão variadas para entender o que acontece no mundo e da ausência de axiomas, como teorias podem se desenvolver e colaborar para o conhecimento científico?

Na proposta desenvolvida por Bruno, em parceria com outros dois ecólogos do IB-USP e um filósofo da ciência da Universidade Federal da Bahia (UFBA), para entender algumas teorias é preciso olhar para o que as pessoas estão fazendo, quais conceitos e representações sobre o mundo natural (os chamados modelos) elas acionam com maior frequência.

Lapidar uma teoria científica é como montar um quebra-cabeça em muitas mãos, em um processo de avanço coletivo do conhecimento. [Imagem: Reprodução/Freepik]
Quanto mais relevantes para uma área, mais essas representações serão citadas por cientistas diferentes. Ao identificar o conjunto de ideias relevantes e compartilhadas, é possível fazer uma síntese do que a comunidade considera importante para entender um fenômeno e quais são as lacunas ainda existentes naquele conjunto de conhecimento, o que ajuda a direcionar recursos financeiros para preencher essas lacunas.

“Na prática, a teoria de uma comunidade científica não é aquilo que alguém escreveu em um livro e nomeou teoria, é o que a comunidade científica efetivamente usa para aprender sobre o fenômeno de interesse”, ressalta Bruno.

O entendimento sobre as referências compartilhadas também permite à abordagem pragmática tornar o caráter social da ciência mais evidente. “Ao saber quais modelos são muito usados e os motivos pelos quais eles são usados, podemos checar se eles refletem os valores que a comunidade científica acredita que devem guiar a construção de conhecimento”, destaca Bruno.

Desse modo, a proposta é também uma maneira de identificar demandas de grupos específicos, como os modelos mais utilizados por diferentes etnias, gêneros e países, o que ajuda a revelar a pluralidade de maneiras de se adquirir conhecimento na ciência. Grupos distintos tendem a apresentar diferentes demandas, percepções e perspectivas, o que enriquece o debate sobre os fenômenos e é fundamental para a qualidade da produção científica, como aponta a historiadora da ciência Naomi Oreskes, da Universidade de Harvard, uma das mais proeminentes vozes da atualidade sobre o tema.

Além de divulgar a importância da diversidade na ciência, Naomi Oreskes é uma das autoras do livro “Mercadores da Dúvida”, que discute a relação da ciência e de cientistas com aspectos políticos, econômicos e com a desinformação. [Imagem: Reprodução/Harvard GSAS Science Policy Group]
Não por acaso, a visão pragmática sobre teorias científicas tem ganhado cada vez mais atenção em áreas fora da biologia, como a física e a economia. A ampliação do olhar sobre o papel da prática na construção do conhecimento permite avançar não só na compreensão de fenômenos em diferentes áreas, mas na produção científica como um todo.

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