Pesquisa investiga como realizar um ensino de ciências inclusivo para estudantes com surdocegueira

Beatriz Critelli: “Eu parto da ideia de se aprender ciências com o corpo inteiro. A princípio é uma coisa específica, mas impacta o ensino como um todo”. Foto cedida pela pesquisadora e usada com autorização dos pais

“Estudar um grupo minoritário mexe com o sistema educacional como um todo. Não tem como se falar do sistema educacional pensando em maioria, porque se você faz isso você vai acabar sendo excludente de alguma forma. Mas se você fala de um grupo minoritário, você influencia todo mundo”. É assim que Beatriz Critelli, doutoranda do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Ensino de Ciências do Instituto de Física da USP, explica a importância e universalidade do impacto de uma educação inclusiva para pessoas com deficiência.

A pesquisadora acompanhou semanalmente duas estudantes com surdo-cegueira do Ensino Fundamental 2 da região metropolitana de São Paulo, uma da rede municipal de ensino, em Barueri, e outra da rede estadual, em Guarulhos. O objetivo consistia em analisar o aprendizado delas nas aulas de ciências naturais. Para isso,  atuou como pesquisadora participante, interferindo no processo e ajudando a construir alternativas para as dificuldades que surgiam.

A Surdocegueira é uma deficiência caracterizada pela ausência da visão e da audição de forma simultânea e em graus diferentes. Segundo a Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis), existem cerca de 40 mil pessoas surdocegas no Brasil.

Guia-intérprete Maria Aparecida e aluna Pyetra, usando um recurso didático sensorial baseado em temperatura. Foto cedida pela pesquisadora e usada com autorização dos pais

Um dos problemas que citados por Critelli é que os intérpretes que acompanham as alunas com deficiência não possuem nenhuma formação ou treinamento na linguagem científica usada nas aulas, dificultando a transmissão adequada do conteúdo às estudantes. Para a pesquisadora, essa é uma problemática chave que precisa ser levada em consideração pela política educacional.

Outra questão importante apontada por ela é a necessidade de que as metodologias inclusivas sejam aplicadas para toda a turma. “Se seu modelo de inclusão separa os alunos com deficiência durante o processo educativo, ele não é inclusivo, é excludente”, comenta. Mais do que isso, confronta a ideia de que incluir pessoas com deficiência atrasa os outros alunos com exemplos de como esses estudantes têm contribuições ricas a compartilhar com seus colegas.

Ao longo da pesquisa, ela desenvolveu materiais didáticos baseados no tato: modelos de moléculas com massinhas de texturas variadas para que os alunos possam distingui-las apenas pelo toque nas aulas de química, por exemplo. A partir do momento em que as alunas com surdocegueira passaram a fazer uso desses recursos, seus colegas manifestaram interesse, e logo todos na sala se engajaram com o ensino alternativo. Além disso, os alunos pediram à professora que conduzisse experimentos com eles, e buscaram sugestões focadas em sensações táteis para que as colegas com surdocegueira pudessem acompanhar.

Guia-intérprete Niclaudia e estudante Fernanda, fazendo uso de um dos recursos didáticos táteis. Foto cedida pela pesquisadora e usada com autorização dos pais

Outra situação ilustrativa aconteceu quando a guia-intérprete trouxe a Beatriz uma preocupação de que os recursos táteis combinados com a tabela em braille (sistema de escrita tátil utilizado por pessoas cegas ou com baixa visão) estivesse fazendo a aluna entrar em contato com o conteúdo de forma muito decorada, sem compreensão real. A partir disso, elas perceberam que isso não se limitava à aluna com deficiência, mas que era problema que acontecia com toda a classe.

“Ao trabalhar com Educação Especial, a gente acaba questionando coisas que não estão funcionando para todo mundo, e acaba reformulando essas práticas . Algumas pessoas acreditam que a inclusão atrasa os alunos sem deficiência, mas a escola precisa refletir a sociedade. Se a nossa sociedade é diversa, por que a escola, não é? Quando problemas envolvendo a inclusão aparecem, eles não são gerados pela pessoa. Eles são gerados pelo ambiente que é excludente, em relação à estrutura, materiais, preparo, preconceito. “, diz Critelli.

A pesquisadora manifesta esperança de que esse trabalho, pioneiro em fazer um diálogo entre a área das ciências naturais e a educação especial para pessoas com surdocegueira a nível de doutorado, norteie futuramente políticas públicas e a atuação de profissionais da educação.

A tese, intitulada “Ciência com sentidos: A relação da linguagem científica e recursos didáticos multissensoriais em processos de ensino de ciências para duas alunas com surdocegueira”, orientada pelo professor Eder Pires de Camargo, ainda não pode ser lida pelo público, mas será disponibilizada no portal Teses USP em breve.

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