O vulcão Nyiragongo e a erupção social na República Democrática do Congo

Erupções de vulcão local expõem milhões de pessoas ao perigo

[Imagem: Reprodução / Wikimedia Commons]

Por Beatriz Sardinha, Filipe Albessu Narciso, Mara Matos, Pedro Ferreira, Pedro Guilherme Costa e Sara Lídice

O Nyiragongo é considerado um dos vulcões mais perigosos do mundo. Localizado nas Montanhas Virunga, ao leste da República Democrática do Congo, é um dos poucos que contém um lago de lava semi-permanente em seu interior. Em seus arredores, a cidade de Goma, parte da província de Kivu do Norte, habita cerca de 2 milhões de pessoas e é uma das mais afetadas pelo vulcanismo da região.

Com quase 3,5 mil metros de altitude, a atividade vulcânica do Nyiragongo é um produto do Rifte Africano Oriental (ou Fenda da África Oriental), uma fragmentação geológica na Placa Africana iniciada há cerca de 20 milhões de anos. A estreita faixa de divergência está dividindo a placa tectônica em duas: a somali, que se desloca em direção ao sudeste, e a núbia, ao noroeste. Essa separação possibilita que o magma suba para a superfície e mantenha o vulcanismo da região em constante atividade.

Devido à baixa quantidade de sílica, um composto que forma a rocha derretida, a lava expelida pelo Nyiragongo é muito fluida e pode se deslocar a cerca de 60 km por hora. Além disso, o vulcão também emite quantidades alarmantes de dióxido de carbono na atmosfera, um gás letal.

Esse conjunto de fatores geológicos coloca em risco a vida de cerca de 9 milhões de moradores que vivem a pelo menos 100 km do monte. Mas, de acordo com André Santos, embaixador do Brasil na República Democrática do Congo desde janeiro de 2018, em entrevista exclusiva a esta reportagem da Agência Universitária de Notícias, o quadro é ainda mais complexo, pois as carências existentes pré-erupção já eram significativas.

Cratera do vulcão Nyiragongo. [Imagem: Reprodução / Fabien Muhire / CNN]
O Monte Nyiragongo na História

O Monte Nyiragongo é um estratovulcão ativo localizado a 20km ao norte da cidade de Goma, ambos próximo à fronteira da República Democrática do Congo com Ruanda. Ele é memorável pela sua formação geológica que favorece a existência de lagos de lava em suas crateras principais e também pela fluidez de sua lava, que já ocasionou diversas fatalidades ao longo da história.

Próximo ao coração da África, nas coordenadas 1,52° Sul e 29,25° Leste, estima-se que o vulcão Nyiragongo teve 34 erupções desde 1882. A região em que está localizado, as montanhas Virunga, também contam com a presença de outros 7 vulcões, como o Baruta, Shaheru e o Nyamuragira, sendo esse último responsável, junto ao Nyiragongo, por 40% das erupções vulcânicas históricas da África.

Arquivos mostram que, entre os anos de 1894 até 1977, existia um lago de lava no local que foi reportado pela primeira vez pelo vulcanologista francês Haroun Tazieff. Mas, com uma erupção no dia 10 de janeiro de 1977, o local em que o lago estava localizado colapsou e sua lava se espalhou pelo território com velocidades próximas a 100 km por hora. Estimativas afirmam que pelo menos centenas de pessoas foram mortas nessa erupção. A lava, no entanto, voltou a se amontoar na mesma cratera e, 5 anos e meio depois, o lago de lava já existia novamente.

 

[Imagem: Beatriz Sardinha]
Um conjunto de características do vulcão Nyiragongo o tornam especialmente letal. Primeiro, os já mencionados baixos índices de sílica na lava fazem com que ela flua com maior velocidade. Com uma região montanhosa em seus arredores, essa lava também é acelerada pelo plano inclinado em que desce antes de atingir locais mais planos da região. Além disso, o magma do vulcão também é particularmente rico em dióxido de carbono, um gás inodoro e incolor que, por ser mais denso que o ar, fica próximo ao chão e é imperceptível aos seres humanos. Locais chamam esse ar cheio de dióxido de carbono de mazuku, traduzido como “vento maligno”.  

Outra característica do monte de extrema relevância é a de que as erupções no Nyiragongo costumam ser precedidas por tremores de grandes amplitudes. Isso foi fulcral para que, em janeiro de 2002, autoridades locais, em especial o Observatório Vulcânico de Goma (GVO), alertassem com sucesso pela primeira vez a população de Goma e Sake da possibilidade de que correntes de lava poderiam chegar à região.  

Ainda assim, a erupção de 2002 causou grandes destruições. Uma grande quantidade de lava inundou os subúrbios e o centro da cidade de Goma, destruindo ou soterrando em lava mais de 4500 casas e prédios. A fluidez da lava em conjunto com as grandes emissões de CO2 causaram centenas de fatalidades e 200 mil pessoas foram desabrigadas em decorrência da erupção.

Quando a erupção enfim parou, grandes tremores de terra foram sentidos entre a região de Goma e Gisenyi. Esses tremores duraram em torno de três meses e causaram o colapso de diversos edifícios na região.

 

Escoamento de lava no vulcão Nyiragongo. [Imagem: Reprodução / Twitter / Russian Mission UN]
O monte manteve seus elevados níveis de atividade vulcânica nos anos seguintes,  especialmente nos anos de 2011 e 2016. A última atividade vulcânica da região das montanhas Virunga ocorreu em 2011, quando o vulcão Nyamuragira entrou em erupção, produzindo fontes de lava que atingiam 400 metros de altura. Em fevereiro de 2016, cientistas observaram que o monte estava soltando lava a grandes altitudes, além de barulhos que poderiam indicar terremotos abaixo da superfície do Nyiragongo. Autoridades locais estavam alertas para a possibilidade de uma nova erupção como a de 2002, que somente aconteceria cinco anos depois.

Erupção recente: destruição e milhões de afetados

No dia 22 de maio deste ano, rachaduras se abriram nas encostas do vulcão Nyiragongo e começaram a expelir lava. O derramamento se dirigiu à cidade de Goma e atingiu cerca de 17 aldeias em seu percurso, além de bloquear uma importante estrada que leva à cidade e cortar a principal fonte de energia local. As autoridades locais confirmaram 32 mortes e mais de 20 mil desabrigados em virtude do desastre. Santos comenta que a lava percorreu 17 dos 19 quilômetros que separavam o vulcão da área central de Goma, destruindo tudo no seu trajeto. “As consequências materiais e humanas foram graves”.

 

Visão aérea da destruição causada pela lava. [Imagem: Reprodução / Twitter / Medair UK]
Após a erupção, cerca de 92 tremores foram registrados nos entornos do morro, sendo 4 deles sentidos pela população e os outros captados através de equipamentos de medição de abalos sísmicos. Os registros preocuparam as autoridades locais, o que levou o governo do presidente Denis Sassou Nguesso a iniciar um plano de evacuação de parte da cidade de Goma pelo receio de uma nova erupção. Muitos cidadãos se abrigaram em Ruanda, país fronteiriço.

Erupção social no Congo

Cerca de 400 mil pessoas abandonaram a cidade de Goma por conta da erupção do vulcão Nyiragongo. O governo chegou a ordenar a saída da população da cidade para preservar a segurança daqueles que moram em zonas de risco por causa do fluxo de lava. A atividade repentina assustou a população.

Em meio a tamanho caos, crianças se separaram de suas famílias e podem ter desaparecido durante a fuga. Um relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância, conhecido especialmente pela sigla Unicef, indica que, até 18 de junho, 1.474 crianças desacompanhadas foram identificadas, entre as quais 1.256 crianças reuniram-se aos seus responsáveis. 131 crianças desacompanhadas ainda estão com famílias adotivas transitórias, enquanto 87 crianças foram colocadas em creches.

A Agência das Nações Unidas tem auxiliado com as necessidades imediatas, que dizem respeito à água, higiene, saneamento, resposta rápida à cólera, proteção infantil, saúde, nutrição, educação e suporte psicológico. Segundo o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, 25% da população ficou sem água. “Antes mesmo da erupção acontecer, a comunidade internacional se fazia presente na área de Goma e arredores com ajuda de caráter humanitário”, afirma Santos. “O desastre causado pelo Nyiragongo provocou uma intensificação dessa ajuda à região, em termos materiais e financeiros”.

 

Membros do CICV junto à população durante a restauração do fornecimento de água. [Imagem: Reprodução / Twitter / CICV]
A organização da população em torno do vulcão sempre deixou insegurança quanto a erupções e seus desdobramentos. A instabilidade política e alguns conflitos que perduram na região dificultam o monitoramento do vulcão Nyiragongo. Ainda que seja um país riquíssimo em matéria-prima, a República Democrática do Congo está submetida a uma realidade em que grande parte da população se encontra em situação de extrema pobreza. As origens do problema estão no período colonial, como apontou a historiadora e mestre em História Social pela USP, Mariana Diniz de Carvalho, em entrevista. 

O violento imperialismo da Bélgica explorou o país por anos, promoveu diversas atrocidades e destruiu o padrão econômico que lá existia. Em decorrência da submissão do continente africano às grandes potências globais, a República Democrática do Congo também enfrentou adversidades na sua retomada à autonomia congolesa. Patrice Lumumba, que havia sido eleito democraticamente para liderar o país, foi impedido de seguir no poder pelos EUA. 

Idealizador e partidário de um Congo independente e unitário, acreditou-se que era próximo demais da União Soviética, à qual chegou a pedir ajuda. E, então, a CIA foi acionada. No livro biográfico publicado pela primeira vez em 2007 “Chief of Station, Congo: Fighting the Cold War in a Hot Zone”, título traduzido como Chefe de estação, Congo: lutando a guerra fria em uma região quente, o ex-agente da CIA Larry Devlin reporta como foi-lhe passado o dever de assassinar Lumumba para evitar que ele se tornasse um “Fidel Castro africano”. Em 1961, Lumumba foi morto, em condições “misteriosas”. Nas três décadas seguintes, Mobutu Sese Seko ficou no poder. Mariana aponta a cooptação das elites locais como uma estratégia clássica do imperialismo. Nesse período, o mandatário atuou em favor dos monopólios ocidentais para extorquir matérias-primas em troca de sua manutenção no poder e dinheiro.

A mineração é uma atividade muito relevante no país, em especial de minérios como o cobalto, o coltan (um mineral composto principalmente de outros dois minerais dos quais se extraem nióbio e tântalo), o cobre e o estanho. Mais de 60% do suprimento mundial de cobalto, minério essencial para a fabricação de baterias, é extraído na República Democrática do Congo, muitas vezes em condições de trabalho predatórias e exploratórias. Em 2019, grandes empresas de tecnologia como Google, Microsoft e Tesla foram indiciadas nos Estados Unidos por estarem cientes da exploração do trabalho infantil nas minas de cobalto na República Democrática do Congo.

A realidade delicada do país dificulta o enfrentamento de diversos problemas, inclusive a erupção do vulcão. O retorno das pessoas que foram obrigadas a deixar o país, em especial das que foram diretamente afetadas pela erupção vulcânica. Várias casas foram devastadas pelas lavas e o processo de reorganização da cidade é delicado e exige muita estratégia e ajuda.  

“O governo da República Democrática do Congo tem trabalhado em conjunto com as agências e ONGs humanitárias para abrigar as pessoas que perderam suas casas e pequenas colheitas”, explica Santos. “Estamos falando de mais um contingente de deslocados internos que se agrega aos milhares que se encontram na mesma situação em razão da violência dos grupos armados”.

Conflitos armados e grupos rebeldes

Áreas de operação de grupos armados em torno da cidade de Goma, com dados de Outubro de 2020. [Imagem: Pedro Guilherme Costa]
Um dos principais agentes responsáveis pela erupção social da República Democrática do Congo é a milícia de rebeldes do Movimento de 23 de Março (M23). O grupo teve seu ápice de atuação no início da década passada, com extensas ocupações do território da República Democrática do Congo (RDC), dominou a parte leste do país, com a cidade de Rutshuru no seio do território conquistado. Houve ampla cobertura midiática das ações do M23 em 2012, justamente pelo poderio militar que o movimento apresentou. 

Além de dominar cidades na fronteira do país, como Bunagana, o M23 chegou a tentar estabelecer uma espécie de “país” dentro da RDC. Os rebeldes substituíram funcionários estatais por membros do grupo, passando a cobrar impostos da população sob seu controle.

Além da violência e opressão sobre a população, cientistas creditaram as ações da milícia como um dos principais dificultadores para o estudo e previsão da atividade do vulcão Nyiragongo. Em 2002, época de uma das grandes erupções do vulcão, especialistas como Kasereka Mahinda, do Observatório de Goma, avisaram as autoridades da cidade com dois meses de antecedência da possibilidade de catástrofe. No entanto, a prioridade eram os conflitos militares com o M23, o que retardou ações de evacuação das áreas de risco.

André Santos fala das dificuldades geradas pelas ocupações dos grupos durante a crise humanitária do Ebola. “Ao longo das epidemias do vírus Ebola, por exemplo, os agentes humanitários tinham de pagar ‘pedágios’ para ter acesso a certas áreas controladas pelos bandos armados”, conta. “O trabalho de seguimento dos ‘contatos’ [pessoas que haviam tido algum contato com pacientes infectados pelo vírus] foi imensamente prejudicado pelas restrições de acesso impostas pelas milícias e similares.”

Ações criminosas do grupo como saques, estupros em massa e roubos deixavam a população de Goma vulnerável ao potencial de destruição do vulcão. Em novembro de 2013, após 4 anos de forte atuação, o exército congolês derrotou o movimento miliciano. Após a queda do Movimento 23 de Março, os rebeldes do FDLR-FOCA (grupo militar e político associado a fusão de tropas pertencentes ao exército ruandês pré-genocídio) passaram a ocupar os arredores da cidade de Goma. Outros grupos, como CNRD-Ubwiyunge, Nyatura CMC, Alliance des Patriotes pour la Restauration de la Démocratie au Congo (APRDC), liderada pelo advogado Benjamin Ndikuyeze, e a Coalition des Mouvements pour le Changement (CMC) são algumas das forças políticas proeminentes na região.

O M23 certamente foi um marco na história de Goma e do vulcão Nyiragongo, mas  ainda que os rebeldes não atuem mais, as influências de suas ações políticas e armadas  ainda refletem no país . Das cinzas do vulcão, outros grupos nascem e tomam seu lugar, em uma disputa ampla por poder que parece longe de terminar. A erupção social e a vulcânica no Congo parecem convergir para tornar a cidade de Goma como uma área que traz perigos naturais e armados à sua população.

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