Livro traz textos sobre experiências de pesquisadores em periferia próxima à USP

Narrativas reúnem relatos, ensaios e vivências de estudantes e moradores coletados durante censo nas comunidades.

Crédito: USP Imagens

No dia 19 de junho, foi lançado o livro “Narrativas Periféricas: Entre Pontes, Conexões e Saberes Plurais”, que traz relatos de participantes do projeto Democracia, Artes e Saberes Plurais (DASP), inserido no Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP. A obra foi organizada pela pesquisadora Érica Peçanha e pelo professor do Departamento de Informação e Cultura (CBD), da Escola de Comunicações e Artes, (ECA-USP), Martin Grossmann, um dos coordenadores do projeto. 

O livro e o avanço do projeto acontecem em um momento de mudança na relação entre as universidades públicas e a periferia no país, que passa por um reforço no acesso à faculdade via cotas sociais, mas também por novas ações das universidades, como a USP, relacionadas à marginalização social e cultural que acomete as periferias. 

Neste cenário, o DASP é uma iniciativa que surge em prol da busca de formação de uma consciência e engloba diversas ações para aproximação das comunidades vizinhas ao campus da USP. O livro traz relatos de jovens pesquisadores, de diversos estratos sociais, que participaram do Censo, cujo objetivo foi traçar um perfil sociocultural e econômico das favelas Jardim São Remo, Sem-Terra (Vila Clô), Jardim Keralux e na Vila Guaraciaba. Os textos foram produzidos entre abril e setembro de 2020 e trazem ensaios, experiências, depoimentos e trabalhos literários de estudantes da Graduação e da Pós-Graduação que participaram do projeto, além de artistas e articuladores locais. 

O coordenador do DASP, ex-diretor do instituto e professor do CBD, Martin Grossmann, explica a importância do projeto no âmbito universitário e o papel do livro nesse contexto. “É um livro de relatos, que mostra um backstage do Censo, um modo de conhecer mais de perto a realidade desses graduandos, que dão um relato da realidade de periferia, ou das diferentes realidades da periferia. Quando você lê o livro, você tem esse grau, e foi muito difícil para os nossos jovens operarem nas favelas. Como coordenador de projeto, vejo essas diferenças, que são de realidades, convívios, e o livro é muito rico nesse sentido”, destaca ele. 

Censo e origem do projeto

O Censo, que está inserido na frente “Pontes e Vivências de Saberes”, ocorreu em um trabalho de campo nas comunidades adjacentes da Cidade Universitária, na zona oeste, e da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), na zona leste. Com o apoio de fundações locais e moradores da comunidade, o projeto promoveu o diálogo entre os estudantes e essas múltiplas vivências periféricas. 

As outras duas frentes de atuação são Centralidades Periféricas, que promove encontros entre membros da comunidade acadêmica e ativistas, intelectuais e artistas representativos das áreas periféricas, e a Conexões USP-Periferias, que traz, em seu portal e plataformas digitais, ações e produções da USP abordando o cenário da favela. 

Martin Grossmann também destaca o momento de planejamento da obra, que coincidiu com a finalização do Censo e o início do período de quarentena, em março do último ano. “O livro é resultado da pandemia. Estávamos finalizando o Censo quando surgiram as restrições, em março de 2020. Ali a gente começou a fazer toda a parte de análise dos dados e foi um momento difícil. Houve uma operação de guerra por meio ano e conseguimos manter nossos bolsistas com uma dinâmica de troca maior entre esse grupo. E isso acabou favorecendo o surgimento desse livro coordenado pela Érica Peçanha”. 

O projeto nasceu em 2018, quando a Cátedra Olavo Setubal de Artes, Cultura e Ciência da USP recebeu a ativista social Eliana Souza Silva, que fundou, no Rio de Janeiro, fundadora a organização Redes de Desenvolvimento da Maré, e também foi diretora da Divisão de Integração Universidade-Comunidade da UFRJ, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Eliana liderou o desenvolvimento do projeto e a reunião desses jovens pesquisadores, focando em concentrar um grupo múltiplo, em que grande parte é de origem periférica. A ativista é responsável pelo prólogo do livro, em que realça o valor humano dessa relação construída pelo projeto. “É difícil dimensionar o quanto fomos nos transformando como seres humanos, nos aproximando nas trocas de cunho acadêmico e, ainda, de campos relacionados a subjetividades que se juntaram a partir do fomento e da construção de outra relação da Universidade com o seu entorno”, escreveu Eliana.

O coordenador da DASP também redigiu o prólogo da obra e valoriza a construção do projeto em seu âmbito acadêmico, mas também como projeto social: “Tivemos projetos anteriores, fomentados por grupos de pesquisa, mas com essa preocupação, tendo a periferia estabelecida como objeto de estudos avançados, é a primeira vez. É algo que, principalmente, nós, da centralidade, privilegiados, olhávamos como algo anamórfico. Mas se trata de uma organização, uma estrutura, que é modelada por diferentes saberes e experiências”. 

Para ele, a manutenção de um projeto como esse na USP é um sinal importante, devido aos crescentes questionamentos sobre as modalidades de ingresso à universidade e em relação à transformação do cenário do Ensino Superior no país, como forma de combate à perpetuação da marginalização social. 

“Quando a gente vê o momento do país e das universidades nacionais, há uma virada. E uma universidade de porte, como a USP, que tem um papel na sociedade brasileira, um papel referencial, de modelo, deve ter como preocupação acompanhar essa virada. Mas a sociedade hoje demanda um grau de resposta muito grande e eu entendo que um projeto como esse tem um grau de importância muito grande, porque pela primeira vez a USP investiu em um projeto com essa característica”, explica Martin Grossmann, evidenciando as funções do projeto em meio a essa esfera de discussão. 

Analisando o contexto histórico brasileiro, em que a conscientização sobre ampliação da diversidade nas universidades públicas começa a crescer a partir do processo de redemocratização do país, na década de 80 Grossmann ressalta como a presença de um projeto como esse mostra a aderência da causa tanto na população, quanto em postos decisivos, como, no caso, a governança da USP.  

“O DASP é justamente fruto desse momento. Há uma certa acessibilidade da governança da USP de tentar entender isso. Então, acho que o DASP vem dessa preocupação institucional. Mas, como eu disse, a USP é mais lenta nesse processo. Entendo que várias mudanças são necessárias, mas estas têm que olhar para o histórico, para o próprio entendimento, do que é essa instituição”, analisa. 

Martin também anunciou que o perfil sociocultural e as informações colhidas no Censo estarão disponíveis em breve em um aplicativo para celular, que será lançado com o intuito de facilitar o acesso para moradores e pesquisadores. 

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