Circulação de animais domésticos em unidades de conservação pode ser perigosa para a vida selvagem

Livre circulação de animais domésticos em unidades de conservação pode ser danosa, mas tutores podem ajudar a atenuar o efeito

Vida selvagem da Mata Atlântica sofre com a presença de animais silvestres no interior de São Paulo [Crédito: Montagem feita por Luana Franzão com imagens do Pixabay]

A livre circulação de animais domésticos, apesar de ser um hábito em algumas regiões, pode ser prejudicial em vários aspectos: para o próprio animal, para a vida silvestre e para os humanos também. Um projeto, criado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que fez parceria com a Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP, procurou entender a relação entre animais domésticos e vida selvagem ao estudar uma comunidade que vive próxima a uma unidade de conservação da Mata Atlântica.

O Projeto Cãoservação, criado pelo Cenap (Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros), unidade do ICMBio, e posteriormente levado para a FMVZ-USP, buscou entender a relação entre meio-ambiente, animais selvagens, domésticos e a comunidade humana. Para isso, os pesquisadores escolheram o Parque Estadual Carlos Botelho, área de conservação da mata atlântica na região de Sete Barras, São Paulo, e uma comunidade de moradores que vive próxima à entrada da Unidade de Conservação.

Ali, eles puderam observar as consequências do livre fluxo de cães e gatos domésticos dentro de uma área de vida selvagem. Ana Pérola Brandão, pesquisadora que desenvolveu um estudo dentro do Projeto, explica que os principais impactos da circulação de domésticos entre os animais silvestres são: a caça, quando cães e gatos caçam animais silvestres para se alimentar ou por instinto, a competição, quando animais silvestres e domésticos competem por recursos como presas menores e água e a perturbação, que ocorre quando animais carnívoros entram no espaço silvestre e são vistos pelos animais da reserva como predadores e acabam mudando seu comportamento alimentar, de deslocamento e até sexual.

A questão mais preocupante, entretanto, é a de transmissão de doenças. As chamadas zoonoses, patologias transmitidas por animais para humanos, podem ser um perigo nestas regiões. A transmissão pode ocorrer tanto de animais silvestres para domésticos quanto o contrário, colocando assim ambos os grupos em risco.

Na população canina, foram registradas doenças como leishmaniose, toxoplasmose e leptospirose, que podem, a depender da forma, atingir humanos. Brandão esclarece que, a partir dos testes realizados pelo projeto, não é possível afirmar que houve transmissão entre humanos e animais domésticos, mas a possibilidade existe. “Fizemos uma análise sorológica nos cães e gatos, que indica se o animal já teve uma determinada doença, não exatamente que ele está tendo naquele momento. Então, não temos como dizer 100%, de que a transmissão ocorreu, e que as pessoas, também tiveram ali a doença por causa deles”.

Um resultado que chamou a atenção dos pesquisadores, entretanto, foi a descoberta da presença de uma variante de cinomose comum em cães domésticos em um dos cachorros do mato avaliados no estudo, o que pode abrir a possibilidade de contágio entre animais silvestres e domésticos naquela região. Mais estudos precisam ser realizados para fazer esta afirmação.

Pesquisadores do Projeto Cãoservação colhem material de cão doméstico para análise sorológica [Crédito: Projeto Cãoservação]

A importância da comunidade

Durante o desenvolvimento do projeto, os pesquisadores perceberam que a principal forma de diminuir o fluxo dos animais domésticos dentro da reserva era a conscientização da comunidade, para que esta pudesse cuidar dos itinerários de seus companheiros. Por esse motivo, Brandão decidiu voltar seus estudos para os moradores da comunidade.

“Sentimos que fazia falta acessar as pessoas que moravam naquele local, o que estava acontecendo, como elas viam esse problema [dos cães e gatos que entram no parque], se elas estavam cientes do que acontecia. Então decidimos montar esse meu projeto em cima da percepção da população. Antes de tomar qualquer decisão, antes de fazer uma intervenção de educação, pensar em uma política pública, é interessante que a gente acesse o que a comunidade”, explicou sobre o projeto.

Como forma de incluir a comunidade nos estudos científicos, Ana Pérola Brandão entrevistou os cidadãos locais e buscou entender a percepção deles sobre os cuidados com os animais de estimação. “Durante as minhas entrevistas, eu fui percebendo que as pessoas tinham um bom conhecimento sobre zoonoses, tinham noção que cães e gatos transmitem doenças, que eles poderiam causar impacto negativo nos animais do parque. Mas muitos deles também achavam que os animais deles não iriam causar. Eles diziam ‘é muito rápido, ele só vai ali na esquina e volta’, mas não tem como ter controle, da onde seu cachorro ou seu gato está indo. Uma das conclusões que cheguei é que tínhamos que fazer uma educação ali em relação à guarda responsável”, descreveu.

Para colocar o projeto de reeducação da população em prática, Brandão escolheu dialogar com as crianças da região. Com a produção de vídeos animados, um livro infantil e um jogo de tabuleiro, dinâmicas foram realizadas para ensinar sobre a saúde dos animais. “As crianças poderiam levar as informações aos pais e também eram mais flexíveis no aprendizado. A intervenção em si foi levar as crianças para o parque de conservação. Muitas delas já conheciam, mas outras nunca tinham ido, então foi interessante. Juntamos as duas esferas do projeto nessa hora: a unidade de conservação e a comunidade. Foi superdivertido, as crianças adoraram”.

Entretanto, a pesquisadora destacou a importância de tratar o assunto com delicadeza, devido à fragilidade social da população. “É uma comunidade que tem alta vulnerabilidade social, então eles têm bastante dificuldade com renda, com o espaço que eles vivem. A questão do governo, repasse de verba, alta taxa de desemprego, eles têm uma situação muito difícil. É complicado você dizer que a pessoa tem que colocar o cachorro dela dentro de casa se ela não tem nem dinheiro para fazer um muro. São algumas intervenções assim que não podemos deixar de fazer, porque o animal também não pode sofrer, mas devemos sempre pensar no todo”.

O conceito sobre o qual foi construído o projeto de Ana Pérola Brandão chama-se Saúde Única. Ele não é uma área de atuação, e sim uma forma interdisciplinar de se pensar o bem-estar. O principal fundamento da Saúde Única é conectar a saúde do ambiente, dos animais e das pessoas, considerando que o bem-estar geral só pode ser atingido com os três âmbitos em equilíbrio.

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