Consolidação da combatente Maria Quitéria de Jesus no imaginário brasileiro faz parte de projeto político de construção da identidade nacional

Pesquisa do IEB demonstra que o Estado brasileiro enxergou, na associação entre a imagem da guerreira e o povo, a possibilidade de redimensionar processos históricos

Retrato de Maria Quitéria de Jesus encomendado por Afonso Taunay a Domenico Failutti para o Museu Paulista, em 1920 (Imagem: Reprodução)

Os retratos de heróis e guerreiros são partes essenciais na construção do imaginário e da identidade nacional de qualquer nação. No Brasil, diversas são as figuras que permeiam a concepção de uma união nacional e os mitos das origens do País. Uma delas é Maria Quitéria de Jesus, combatente baiana da Guerra de Independência do Brasil. 

“Uma figura específica e fascinante, mas que acaba sendo deixada de lado em pesquisas”, afirma Nathan Gomes, mestrando do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP e autor da pesquisa em andamento “Quando as mulheres vão à guerra: representações de Maria Quitéria de Jesus no imaginário nacional brasileiro (1823-1979)”.

Em seu trabalho, Gomes busca analisar a construção do imaginário nacional em relação à figura de Maria Quitéria em três momentos distintos: nos anos de 1820, quando da participação dela na Guerra de Independência; nos anos de 1920, no centenário da independência; e na época após as celebrações dos cem anos da independência. 

Construção do imaginário de Maria Quitéria de Jesus em períodos da história

As primeiras imagens de Maria Quitéria foram um desenho e uma gravura produzidos logo após a independência, a pedido de Maria Graham, intelectual britânica. “Com o fim da guerra, ela é condecorada e, nos anos seguintes aos da guerra, com o estado imperial nascente, surge um interesse em usar a imagem da militar para construir a ideia de que existia uma aspiração nacional pela independência, que teria mobilizado inclusive as mulheres – o que realmente aconteceu”, explica Gomes. 

Nesses primeiros anos de Império, buscava-se construir uma identidade do Brasil, costurar e alinhavar as identidades políticas e ver a independência não como um desejo apenas da elite dirigente, mas também de toda a população. Para isso, promove-se a associação entre a imagem de Maria Quitéria e o povo.

Já nas comemorações do centenário do rompimento do Brasil com Portugal, nos anos de 1920, buscou-se rearticular a memória da independência, redimensionar personagens e o mito de origem nacional a partir do novo sistema, o republicano. Nesse período, segundo Gomes, a imagem de Maria Quitéria se consolida no imaginário nacional. 

“Isso se dá por meio de retratos, como o encomendado por Afonso Taunay para o projeto decorativo do Museu Paulista, ou ainda o retrato inaugurado no mesmo período no Instituto Geográfico Histórico da Bahia, em Salvador – ambos os quadros baseados nas primeiras gravuras de Maria Quitéria”. As imagens de Maria Quitéria começam a aparecer ainda em livros didáticos, e até mesmo em programas de rádio comenta-se sobre a guerreira. 

No ano de 1953, o exército brasileiro esforçou-se em trazer a imagem de Maria Quitéria para o seu quadro como uma figura cativa da História do exército brasileiro, uma homenagem comemorando os 100 anos da morte da militar. “Ela entra na ordem do dia quando, em função dessa comemoração, os militares inauguram um retrato dela em todos os estabelecimentos do exército”, explica o pesquisador. 

A figura da guerreira é importante também no período da ditadura militar, quando o Movimento Feminino pela Anistia apropria-se da imagem de Maria Quitéria como símbolo da liberdade. “Essas mulheres inclusive criam um boletim – no qual a imagem da militar é estampada –, e fazem atos públicos no monumento de Quitéria inaugurado em Salvador, em 1953.”

Boletim do Movimento Feminino pela Anistia (Imagem: Reprodução)

Usos políticos da imagem de Maria Quitéria: questões de raça e gênero

Em sua pesquisa, Nathan Gomes busca ainda identificar problemáticas relacionadas aos usos políticos da figura de Maria Quitéria. Uma delas diz respeito aos escravizados que, à época da guerra de independência, participaram efetivamente dos combates e “foram às armas pela independência”, como ele comenta. “Apesar disso, eles não participam dessa memória, dessa narrativa – não estão entre os cidadãos que ‘aspiravam à independência’, podemos dizer”. 

Além dessa, diversas questões de gênero se colocam, dentre elas a que diz respeito à participação das mulheres na esfera pública nos anos de 1820. “Podemos pensar em Maria Quitéria como o caso mais extremo, o mais radical, mas não foi um caso excepcional e isolado de mulher mobilizada politicamente em torno da causa da independência”, ele explica. 

Para além da sua época, a trajetória de Maria Quitéria compara-se com a de outras mulheres guerreiras – como Jovita Alves Feitosa, que ficou nacionalmente conhecida por ter lutado na Guerra do Paraguai, em 1865. “Conseguimos identificar semelhanças em suas trajetórias: mulheres jovens que fogem de casa travestidas como homem, assumem uma identidade masculina até serem descobertas. A partir do momento em que mostram a aspiração à luta, por um ideal, passam a ser valorizadas por isso”, aponta Gomes. 

Segundo ele, a mulher guerreira tem, historicamente, atuação episódica, já que, nas narrativas, sua atuação se justifica socialmente. “Nos registros, elas surgem com a ideia de que os homens estão em falta, por isso precisam guerrear. Com o fim de sua atuação, voltam para casa – como foi com Maria Quitéria.”

O pesquisador aponta mais um elemento conservador na construção das narrativas dessas mulheres. “Apesar de as biografias mostrarem uma narrativa revolucionária, existe quase que uma domesticação da imagem. A excepcionalidade do caso favorecia a ideia de que mulheres não devem ir à guerra”, completa ele. 

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