Proporcionalidade de recursos partidários entre negros e brancos foi avanço antirracista?

Pesquisadores da FFLCH discutem resultados da nova distribuição de recursos partidários e como o racismo estrutural impacta eleições

Erika Hilton, eleita a vereadora mais votada em São Paulo. Foto: El País

Acionado em consulta eleitoral pela deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ), com suporte da associação EDUCAFRO (Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes), o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidiu no dia 26 de agosto de 2020 que os partidos devem dividir proporcionalmente entre seus candidatos negros e brancos o tempo em rádio e televisão e os recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), com um percentual mínimo de 30% para os negros, medida que começou a valer nas últimas eleições municipais. A Agência Universitária de Notícias da USP conversou com dois pesquisadores das ciências políticas para entender qual a importância da decisão do Judiciário e como o racismo estrutura relações políticas no Brasil, levando à subrepresentação de negros entre os candidatos eleitos. 

Com recorde de candidaturas em 2020, os negros (somatória de pretos com pardos, segundo classificação do IBGE) aumentaram sua participação na política municipal. Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), dos mais de 5,4 mil prefeitos eleitos, aproximadamente 1,7 mil candidatos se declararam pretos ou pardos, o que corresponde a 32% do total de eleitos — em 2016, os negros eleitos à prefeitura foram 29%. 

Já nas câmaras municipais, mulheres e homens pretos ou pardos são 44% dos vereadores na soma das 25 capitais que tiveram eleições em novembro, segundo levantamento do jornal Gênero e Número. Estas eleições também tiveram a maior proporção e o maior número de candidatos negros já registrados pelo TSE, sendo, pela primeira vez, a maioria das candidaturas (49%). 

É possível identificar um avanço de representatividade nas eleições deste ano também a partir de algumas vitórias expressivas como a de Erika Hilton, a vereadora mais votada de São Paulo, mandatos coletivos como o Quilombo Periférico (também em São Paulo), e a eleição, por todo o Brasil, de 56 vereadores e um prefeito quilombolas. 

Mas a proporção de negros eleitos ainda está longe de alcançar o percentual de 56% que esse grupo representa na população brasileira. 

Flavia Rios, doutora em Sociologia pela FFLCH-USP, explica que o racismo que estrutura as relações sociais no Brasil também estrutura a política, que distribui poder de forma desigual entre negros e brancos, assim como em outras esferas da vida, o que se reflete nas eleições. “Para que um candidato seja eleito é preciso investimento, é aí que os candidatos negros sofrem um impacto forte, porque as candidaturas brancas, já estabelecidas, mais próximas das cúpulas dos partidos, são priorizadas.”

Para Moacir Marques de Lima Júnior, mestrando do Departamento de Ciências Políticas da FFLCH-USP, esse panorama é um sinal claro do racismo estrutural. “Não existe lei alguma proibindo negros de participarem da vida política, mas as estruturas político-partidárias não abrem seus espaços para a comunidade negra.” 

O subinvestimento dos partidos nas campanhas de candidatos negros em relação às campanhas de brancos é um obstáculo importante à eleição desses candidatos negros. Falando de deputados, segundo levantamento de 2014 do Estadão, brancos recebem o triplo de investimento. 

Nas eleições de 2020, apesar da decisão do TSE, partidos continuaram a investir mais nos candidatos brancos.

Decisão do TSE foi descumprida pela maioria dos partidos

Na reta final da campanha, 10 dias antes do primeiro turno, a decisão do TSE sobre divisão proporcional de recursos partidários entre candidatos negros e brancos ainda não havia sido cumprida pela maioria dos partidos, como mostra o levantamento do G1, com dados do dia 5 de novembro de 2020.

Receita do Fundo Eleitoral dos candidatos brancos e negros — Elaboração: Elcio Horiuchi/G1

“Os partidos costumam burlar as políticas inclusivas. Eles são formados por grupos que já estão acostumados com uma lógica de distribuição do poder que majoritariamente beneficia as pessoas brancas e homens”, explica Flavia Rios. 

A plataforma 72 horas aponta em relatório que negros e negras receberam 36,8% do total dos valores repassados pelo fundo especial de financiamento de campanhas, o chamado fundo eleitoral, e pelo fundo partidário. Enquanto isso, candidatos autodeclarados brancos receberam 62,5% dos recursos. 

Distribuição de recursos eleitorais entre etnias por partido em 2020. Gráfico: Plataforma 72horas

Racismo estruturando a vida e a política

Flavia Rios cita o capital econômico e o capital simbólico de redes de contatos e educação formal, que indicam origem de classe, como elementos determinantes para o sucesso de campanhas eleitorais, e que fragilizam candidaturas negras por conta do histórico menor acesso desta população a esses elementos.

Moacir Lima explica que, na outra ponta, do eleitor, as chamadas pautas identitárias também não recebem muita aderência. “No Brasil, nós não temos uma tradição de voto negro. Ainda é muito difícil colocar a questão racial como plataforma única de campanha eleitoral. Historicamente, esse tipo de candidatura encontra grande dificuldade em se eleger, e por isso acabam precisando buscar votos de uma ampla base eleitoral, somar outras pautas para se sustentar, como a da mulher, meio ambiente, ou religiosa.” 

Para Lima, esse panorama expõe a importância de se garantir financiamento para as candidaturas negras e expandir seu alcance. 

Avanço antirracista

Sobre a decisão do TSE, os pesquisadores acreditam que seja boa e necessária, embora não resolva a problemática do racismo na política. Moacir de Lima afirma que um passo fundamental é os partidos pluralizarem seu comando, delegando estes cargos também a pessoas negras. “A determinação foi uma forma de avanço, ainda que mitigada. Veio de fora, pelo Poder Judiciário, e não houve mudança estrutural nos partidos. Enquanto negros e pautas negras não forem parte constituinte das direções partidárias, planos e projetos político-eleitorais, fatalmente haverá a manutenção da exclusão dos negros das eleições.” 

Flavia Rios também chama a atenção para a postura dos partidos. “Se eles tivessem se movido o suficiente para garantir uma igualdade racial lá dentro, nem seria preciso ação do TSE.” 

A pesquisadora defende a proporcionalidade de recursos partidários entre negros e brancos. “Não podemos perder de vista que foi uma demanda de uma parlamentar negra e de uma organização do movimento tradicional que fez toda a movimentação para que nestas eleições a medida já tivesse validade.” 

Rios ainda chama atenção para o debate público gerado na imprensa e nas redes sociais. “Isso deu visibilidade ao racismo no interior dos partidos e no poder político, fortaleceu as candidaturas negras, de periferia, de mulheres negras e quilombolas. Esses resultados positivos foram principalmente mais visíveis em grandes cidades e em algumas capitais.”

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