Longe das criptas: pesquisa decifra práticas funerárias do Antigo Egito

Amuletos podem ser a chave para compreender relação entre poder e classes mais baixas

Amuletos de períodos históricos diferentes revelam informações sobre a vida das não-elites. Foto: Victoria Arroyo

Pensar no Antigo Egito, mais do que em qualquer outra civilização da época, é pensar na morte. Especificamente, pensar na morte das classes mais elevadas, faraós e sacerdotes, com toneladas de ouro adornando suas tumbas, mumificações com poder extraordinário de preservação e jóias intrincadas, como as da famosa máscara de Tutankamon. Mas nem todos têm essa percepção. “Minhas pessoas não eram mumificadas, mas enterradas em um buraco na areia, às vezes com um tapete enrolado e alguns amuletos”. Quem conta é a pesquisadora Victoria Arroyo, mestranda do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP.

Seus estudos concentram-se justamente nas não-elites, pessoas da classe social mais baixa, sem oportunidades de acesso a bens materiais, e com quase nenhuma visibilidade na egiptologia moderna. “Não queria trabalhar com indivíduos ricos, porque isso já foi bastante explorado”, revela. Sua intenção foi compreender se as mudanças na transição do Reino Novo, de organização política centralizada, para o Terceiro Período Intermediário, descentralizado, afetou as práticas funerárias dessas pessoas. Em outras palavras, através da morte, verificar se as mudanças ocorridas na administração do império chegaram às classes de baixo. Para elucidar essa questão, Victoria concentrou-se no uso de amuletos. 

“Achei interessante o fato dos amuletos estarem muito presentes no enterramento das não-elites, sendo às vezes os únicos itens com elas”, revela. A pesquisadora verificou que algumas divindades pouco importantes no Reino Novo apareceram esculpidas nos artefatos do período seguinte. “Isso me dá uma ideia de que essas pessoas, de alguma maneira, tinham acesso ao que estava acontecendo, porque a prática desses amuletos mudou”. Seu objetivo agora é compreender a significação desses itens para as não-elites, na maioria das vezes, pessoas iletradas que não tinham acesso aos textos funerários e às escritas oficiais dos templos.

Utilizando um banco de dados com 768 amuletos, de quatro sítios diferentes (dois de cada período mencionado), e analisando as amostras, Victoria encontrou algumas pistas. Mulheres e crianças carregavam amuletos com maior frequência do que homens, e as divindades representadas eram adoradas em cultos populares justamente por protegerem esses grupos. “A partir daí podemos chegar a conclusões mais concretas”, explica. “Isso pode ter ocorrido por esses grupos serem mais vulneráveis em vida. No geral, amuletos eram usados para proteção, tanto na passagem para o pós-vida, quanto para segurança no que viesse a seguir.” 

Analisar práticas milenares envolvendo crenças no além, entretanto, jamais será um território de certezas. “Talvez fossem apenas algo que elas tinham em vida e queriam levar para morte”, indaga a pesquisadora. O importante é que com a sistematização dos dados arqueológicos adquiridos nos sepultamentos, interpretar e entender se há variabilidade dentro do mobiliário funerário das não-elites pode elucidar uma área da egiptologia pouco explorada até agora. “Não podemos trabalhar a história de cima para baixo, como se as pessoas estivessem apenas copiando o que está acontecendo na camada de cima.”

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