Coletivos exploram fronteira entre saúde mental, cidadania e identidade

Produções artísticas ganham vida ao fugir de caracterizações tradicionais. Imagem: Hugo Vaz

Há mais de 25 anos, diferentes coletivos artísticos e culturais na cidade de São Paulo têm experimentado a criação de comunidades totalmente inclusivas, acolhendo pessoas com diferentes diagnósticos de saúde mental, vulnerabilidade social e deficiências. O princípio é o mais fundamental possível: todos são aceitos; todos são bem-vindos. Mas se por um lado essa identidade plural desafia a lógica mercadológica e governamental de categorização desses grupos, criando um ambiente de alento, provocação e estímulo, ela também dificulta o acesso dessas populações às políticas culturais e de cidadania.

É o que vários autores têm chamado de “comum”, um espaço [público] que está para além do que o Estado e o governo conseguem abarcar e também não está no âmbito do privado”. Quem explica é a pesquisadora Isabela Valent, do Laboratório Arte Corpo e Terapia Ocupacional (Pacto), da Faculdade de Medicina da USP. Ela desenvolve doutorado sobre o tema e investiga “comunidades heterogêneas”, aquelas que não segregam seus membros em categorias, ou lhes dispõe sob uma redoma identitária. A ideia não é deixar de criar uma identidade, mas não pautar a convivência apenas nela”, esclarece.

Através de uma oficina audiovisual colaborativa, Isabela documentou e entrevistou membros de sete coletivos paulistanos com essa prática de inclusão irrestrita, a fim de entender seus mecanismos. São eles: Cia Teatral Ueinzz; Coral Cênico Cidadãos Cantantes; Oficina de Dança e Expressão Corporal; Coletivo Preguiça; Ponto de Cultura É de Lei; Ponto Benedito e Clínica Pública de Psicanálise.

O jovem Rodrigo Sano, e o cearense Fran Silva passaram por esses ambientes e atestam seu poder de integração. “Fui internado há seis anos atrás, esquizofrenia e tal”, diz o primeiro, com serenidade igualada apenas pela franqueza. “Às vezes tudo que precisamos na vida é de um grupo. Um lugar onde possamos ser respeitados”. Já Fran descreve-se apenas como “muito tímido” e destila suas experiências em palavras que chegam compassadamente, bem- pensadas. “Participar  disso [coletivos] foi a melhor coisa que me aconteceu.”

Foi produzido um documentário com base nas entrevistas coletadas para pesquisa. Foto: Yasmin Oliveira

A tensão centrada no caráter desviante dessas comunidades faz com que sua existência em meio a cultura normativa sempre encontre desafios na ausência de interesse mercadológico ou impossibilidade de pleitear financiamento. Mesmo assim, os coletivos produzem teatro, dança, performance, fotografia, clínica, música, artesanato e outras formas de expressão há mais de duas décadas, promovendo estratégias de participação social e cultural de pessoas marginalizadas por diferentes motivos e com acesso restrito aos serviços de saúde e assistência social. 

Eles conseguem estender a seus integrantes boa parte do que a constituição prevê em termos de acesso aos direitos e o que as políticas públicas tentam fazer, mas que jamais lhes seria disponibilizado através das vias tradicionais. “Minha hipótese é justamente que eles conseguem alcançar isso porque não se institucionalizaram”, explica Isabela. “Eles acontecem porque as pessoas acreditam na finalidade daquele espaço, tem desejo de estar lá. É por isso que os projetos coletivos sobrevivem.”

Incomuns

Além da pesquisa, o registro audiovisual dos coletivos originou o documentário Incomuns, que estreou em Portugal, no dia 15 de setembro, na quinta edição do MEXE, Encontro Internacional de Arte e Comunidade. O filme tem duração de 30 minutos e explora as atividades de cada grupo, associando livremente imagens de performances à depoimentos individuais, onde os próprios integrantes questionam sua participação e ocupação dos espaços.

“Queria ver a partir do olhar deles, ouvir a voz deles, e o filme foi uma estratégia para essa voz emergir”, explica Isabela, que não se coloca como diretora, mas articuladora do filme. Muitos que integram as cenas também participaram dos processos de produção e edição. “O audiovisual foi uma estratégia de conexão, de integração, e agora estão todos ligados por esse filme.”

O documentário será lançado ao público em 2020, e a ideia é que ele possa circular e gerar debates com diferentes grupos.  Também serão disponibilizadas versões estendidas das entrevistas com cada coletivo no canal incomuns do YouTube. “A ideia é que o projeto se torne um acervo vivo, para que as pessoas conheçam cada coletivo.”

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