Medicina regenerativa avança e sofre impacto da falta de investimento

Com objetivo de criar novos tratamentos, o campo pode auxiliar na diminuição da fila de transplante de órgãos

Deixando para trás as polêmicas de células tronco, a medicina regenerativa se transforma através de novas tecnologias

Enquanto a medicina tradicional auxilia o organismo a se restabelecer tratando os sintomas da doença, a medicina regenerativa se ocupa de desenvolver tecnologias para recuperar, ou até mesmo substituir por inteiro, órgãos lesados por traumas severos ou doenças degenerativas. Essas enfermidades são caracterizadas por afetar estruturas corporais de maneira irreversível, sem tratamento que leve à cura – como é o caso da diabetes, leucemia e alzheimer. Além de aumentar a esperança da diminuição de filas de transplantes, esse campo deixa para trás as polêmicas das células tronco embrionárias através da exploração de novas tecnologias, mas é prejudicado pela falta de investimento.  

Um dos segmentos médicos mais novos e promissores da atualidade, a medicina regenerativa trabalha em numerosos contextos. “Essa área tem crescido muito, houve diversos avanços nos últimos anos. Seu produto final é extremamente gratificante, abrindo a possibilidade de ajudar inúmeras pessoas”, declara Ana Lídia Jacintho Delgado, pesquisadora do tema na pós-graduação da Faculdade de Medicina e Zootecnia (FMVZ) da USP. 

Apesar da complexidade da tarefa, Ana Lídia crê que a importância dela esteja na possibilidade de melhora dos pacientes: “é sobre trazer maior longevidade e devolver qualidade de vida. É isso o que tentamos fazer”. Para tanto, os estudos trabalham com uma grande somatória de conhecimentos, envolvendo médicos, biólogos, químicos, matemáticos, físicos e engenheiros. Os dois contextos principais do desenvolvimento das pesquisas são terapia celular e bioengenharia.

Novas tecnologias superam polêmica das células tronco

A terapia celular tem como finalidade regenerar órgãos que tiveram suas funções prejudicadas – sem, necessariamente, substituí-los por completo. Para isso podem ser usadas desde células maduras, que já têm função definida; até células troncos, que têm capacidade de serem programadas para funções específicas (potencial pluripotente).

A importância das células tronco deriva dessa capacidade especialmente promissora para o tratamento das doenças degenerativas, encontradas naturalmente em dois tipos: adultas e embrionárias. As células adultas se situam principalmente na medula óssea e no cordão umbilical, e são menos versáteis que as embrionárias. Apesar disso, sua obtenção não causa polêmica e elas já são aplicadas no tratamento de certas enfermidades – como a leucemia, através do transplante de medula óssea. 

As células embrionárias, entretanto, são um tópico mais delicado. Extremamente modificáveis, derivam de células internas do embrião em seus primeiros estágios de desenvolvimento (de quatro a cinco dias após a fecundação), o qual é destruído após a extração das células – o que gera a problemática ideológica e religiosa. Apesar da formação do sistema neural ser posterior a 14 dias, diversos grupos acreditam que a vida se inicia na concepção e, portanto, o embrião de cinco dias teria o mesmo direito a vida que um ser humano desenvolvido.

No Brasil, através da Lei de Biossegurança, as pesquisas com embriões foram autorizadas, mas restritas a aqueles produzidos in vitro e congelados há mais de três anos – o que não impediu que diversas organizações realizassem protestos contra o Superior Tribunal Federal (STF), como o Movimento Nacional Brasil sem Aborto e o Movimento Pró-Vida Família. 

Apesar de toda discussão em torno deste ponto, Ana Lídia crê que estamos deixando a questão para trás. “Eu acredito que essa perspectiva tem mudado muito. O surgimento das células tronco induzidas em laboratório ajudou a diminuir essa polêmica”, declara a pesquisadora.

As células tronco pluripotente induzidas, ou induced pluripotent stem cells (IPS), são provenientes de células adultas modificadas através de processos específicos, ganhando a característica peculiar das células embrionárias: a pluripotência. A técnica é desenvolvida desde 2012 e é uma oportunidade para a medicina regenerativa superar as adversidades ideológicas-religiosas que toca.  

Estudo de bioengenharia para transplante na FMVZ 

Enquanto isso, a bioengenharia tem como objetivo a geração de um novo órgão, que irá substituir aquele que perdeu sua função irreversivelmente. Para isso, ela se utiliza de várias ferramentas: células, suportes biocompatíveis para estruturação e moléculas sinalizadoras para organização e coordenação.  

Dentro da FMVZ USP, há um grupo que se ocupa da bioengenharia tecidual, voltada para medicina regenerativa, do qual Ana Lídia faz parte. “Nessa área trabalhamos com a descelularização, que é a retirada de todas as células de um órgão ou tecido; e com a recelularização, que é quando ‘colocamos’ as células de volta”, conta ela. 

A pesquisadora trabalha com a produção de suportes para transplante, chamados de scaffolds, que são feitos de materiais biocompatíveis e biodegradáveis, onde células podem ser cultivadas para construir um tecido in vitro. Sua estrutura fornece sustentação mecânica ao desenvolvimento celular, além de permitir o transporte de nutrientes. “No meu caso, eu faço biomaterial do coração de suíno e quantifico a matriz extracelular, avaliando se ele está apto ou não para transplante”, diz ela. 

Segundo Ana Lídia, até o momento, a técnica de scaffold tem tido bons resultados principalmente porque não há necessidade de focar somente em humanos para a pesquisa, podendo usar animais – como ela faz – para os segmentos de xenotransplante (transplante de órgãos entre diferentes espécies) e xenoenxerto (transplante de tecido entre diferentes espécies).  “A vantagem da técnica é não depender de um órgão ou tecido. Por exemplo, se você teve seu corpo queimado, é mais viável esperar um transplante ou utilizar scaffold para esse tratamento?”, afirma a pesquisadora. 

Transplante de órgãos e impacto da falta de investimento

Uma das grandes apostas em cima da medicina regenerativa é sua possibilidade de reduzir, ou mesmo cessar, as filas de transplante de órgãos. Ana Lídia não acha que essa chance seja uma realidade distante: “avançamos muito nos últimos anos, ainda pode demorar um pouco, mas acredito que estamos chegando perto”. Apenas no Brasil, há mais de 30 mil pacientes em lista de espera, segundo dados da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (Abto).

A pesquisadora também diz que, apesar das progressões dentro da medicina regenerativa, o Brasil ainda está distante do patamar de países que investem em pesquisa e ciência – como Espanha e Estados Unidos. Para ela, a questão financeira é um grande entrave no avanço e melhora desses estudos: “nossa maior dificuldade, sem sombra de dúvidas, é na reprodutibilidade de artigos científicos. Quando nos baseamos em um paper, na maioria das vezes não temos as mesmas condições para reproduzi-lo. Temos que adaptar tudo para ter um resultado tão bom quanto. Fazer ciência no Brasil é muito complicado e caro, nos impacta muito e precisamos de investimento”. 

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