Harry Potter forma leitores críticos sem abrir mão da emoção

Pesquisa destrincha relação entre a obra e os leitores da saga

A saga é protagonizada pelo bruxo Harry – Foto: Warner Bros / Divulgação

Uma pesquisa feita com base na série de best-sellers Harry Potter vai de encontro à ideia de que para refletir sobre algo é necessário se distanciar e fazer uma análise fria. Não apenas mostra que é praticamente impossível separar afeto e reflexão, mas aponta que essa combinação é enriquecedora. O trabalho foi a dissertação de mestrado de Beatriz Masson na área de Teoria Literária e Literatura Comparada pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Fã de Harry Potter desde a adolescência, Beatriz questionava durante sua graduação em Letras por que a crítica especializada avaliava tão mal uma série com tanto respaldo popular. A indagação rendeu duas iniciações científicas, mas foi no mestrado que resolveu aprofundar sua reflexão sobre a obra.
A pesquisa é composta basicamente por dois momentos. No primeiro, Beatriz trabalha com o texto dos sete livros em si. Depois, foca sua análise no público leitor e o processo de construção de suas impressões sobre a obra.

“O amadurecimento de Harry”

“Primeiramente analisei a construção do espaço e dos personagens da série, e aprimorei minha análise que relaciona Harry Potter ao romance de formação”, comenta. Romance de formação é um gênero no qual o protagonista passa por um processo de desenvolvimento psicológico e moral no decorrer da história. Isto fica claro ao olharmos a dinâmica escolhida por Beatriz, dividindo a saga em três “blocos narrativos”.

No primeiro bloco, que engloba os três primeiros livros, ela explica que sempre há um mistério a ser resolvido pelo trio dentro da narrativa. Além disso, Harry apresenta traços de um herói clássico, corajoso e leal às suas escolhas – praticamente sem falhas ou crise moral.
Já o segundo bloco é composto apenas pelo quarto livro da série, Harry Potter e o Cálice de Fogo, Beatriz explica que a narrativa “detetivesca” se mantém, mas ganha tons realistas com Harry apresentando “traços mais humanos”. “É a primeira vez que vemos o garoto lutando pra salvar sua própria vida, tendo medo de morrer”, exemplifica.
Os três livros finais formam o último bloco, nele o protagonista abraça todos os graus de sua humanidade, demonstrando raiva, ódio, medo, e egoísmo, por exemplo – características bastante distantes da ideia inicial de garoto destemido e corajoso.

Para Beatriz, ao olhar o conjunto dos três blocos narrativos a ideia do romance de formação é evidenciada. “Vemos como o crescimento e o amadurecimento de Harry é a força motriz do enredo, que se torna mais complexo e cheio de nuances a medida que o tempo passa.”

Entre a academia e o popular

O segundo momento da dissertação traz uma pesquisa de campo com leitores da série. A ideia era entender como eles próprios construíam análises sobre os mesmos pontos que Beatriz analisou anteriormente, além de entender como a obra impactou suas vidas. Esse processo se deu através de um curso gratuito e aberto a todos os públicos que a pesquisadora ministrou na FFLCH.

O curso “Harry Potter: Caminhos Interpretativos” teve grande repercussão midiática, e foi divulgado na Folha de S. Paulo, Estadão, entre outros grandes veículos. A experiência mostrou o quão poderosa pode ser a aproximação do conhecimento produzido nas universidades e elementos populares. Foram 60 alunos matriculados, e uma fila de espera tão grande que levou à realização de uma segunda edição do curso.

“É muito importante que a gente continue tentando levar o debate que acontece dentro da academia para fora dela, para que haja um maior esclarecimento sobre o que realmente é estudado dentro da USP e de outras universidades”, reforça Beatriz.

“É impossível dissociar o afeto da reflexão”

Entre as conclusões tiradas dos eixos sobre o qual a pesquisa se desenvolve, Beatriz destaca a que se relaciona com o afeto que os leitores constroem com determinadas obras. “Isso é importante para a construção de sua identidade de leitor. Falar sobre Harry Potter no curso muitas vezes se confundia com o falar da própria experiência.”

Ela aponta que o hábito dos leitores de Harry Potter retornarem às obras para novas leituras propiciou novas reflexões e olhares sobre o texto literário. Esta reflexão depurada só foi atingida, segundo Beatriz, porque são “leitores apaixonados pela obra”.

“É praticamente impossível dissociar o afeto da reflexão, e – a meu ver – isso faz com que ela se torne ainda mais rica. Normalmente, somos encorajados a seguir o caminho oposto: tente se distanciar de um objeto para poder refletir sobre ele. Minha pesquisa mostrou justamente o contrário.”

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