Discurso de Bolsonaro na Assembleia Geral da ONU quebra tradições

Fala prioriza assuntos domésticos, rompe o poder dos acordos globais e pode trazer consequências negativas para as relações internacionais do país 

Jair Bolsonaro, presidente da República, na Assembleia-Geral da ONU (Imagem: Reprodução)

A 74ª Assembleia Geral da ONU ocorreu entre os dias 24 a 30 de setembro, em Nova York. Como de costume, o Brasil é encarregado de fazer o primeiro discurso do evento. Pautas como crises globais, climáticas e políticas marcaram a 74ª edição, mas o discurso do presidente Jair Bolsonaro ganhou repercussão internacional negativa, classificado como intolerante e negligente sobre a Amazônia.

A fala do Brasil mudou a forma como são os discursos nas Nações Unidas, segundo Amâncio Oliveira, coordenador científico do Centro de Estudos das Negociações Internacionais (Caeni), do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP. “Os discursos na ONU tendem a ser para o multilateralismo e são montados para fora, ou seja, para posicionamentos mais gerais das relações internacionais do País”, explica Oliveira, e avança: “O discurso do presidente foi muito voltado para a plateia interna, ele tentou montar um apoio doméstico no discurso, com um pouco de ideologia tentando agradar os eleitores”. 

Com críticas aos antigos governos brasileiros, citação a referências religiosas, discurso de soberania em relação à Amazônia e silêncio sobre questões climáticas, Oliveira diz que o discurso foi uma mistura entre planos domésticos e internacionais. “Normalmente, a fala do Brasil é mais internacional do que doméstica, mas tem algumas pitadas. O que o presidente fez no discurso requer uma visão mais nacional. Isso é atípico.”

Críticas ao passado

A fala tem início com uma crítica ao Programa Mais Médicos, lançado pelo Governo Dilma Rousseff. Bolsonaro comenta que o projeto foi “um acordo entre o governo petista e a ditadura cubana”, e traz informações incorretas sobre o alcance, resultado e exigências do programa. 

O coordenador do Caeni analisa essas críticas a antigos feitos de governos como uma postura inapropriada. “Não é bom utilizar o espaço externo para poder lavar roupa domesticamente”, conta Oliveira, e acrescenta: “Não é bem-vindo dentro do jogo político porque orientações políticas anteriores devem ser respeitadas como expressões democráticas”. 

Críticas e informações modificadas se expandiram para outros tópicos abordados, como a imigração da Venezuela e acordos entre Brasil e Mercosul e, índices de violência nacional. Por ter exibido os feitos do governo na fala na ONU, Oliveira classifica que o discurso do presidente se mostrou como uma campanha eleitoral em tom mais agressivo e “há uma ruptura de tradição nesse aspecto do discurso porque não se deve fazer isso.” 

Contagem das palavras mais usadas na fala de Bolsonaro na ONU (Imagem: Folha de S. Paulo)

Soberania nacional

Em uma das partes da fala do presidente, ele declara o País como soberano, principalmente no tema referente à Amazônia. Bolsonaro posiciona-se contra multas ambientais e comenta que não houve aumento das queimadas florestais nos últimos anos, apenas maior visibilidade dada pela mídia global que deseja atacá-lo.

Em temas como demarcação das terras indígena e intervenção internacional na Amazônia, o presidente afirmou: “É uma falácia dizer que a Amazônia é um patrimônio da humanidade”. Oliveira considera legítimo o posicionamento de Bolsonaro contra intervenção internacional em assuntos domésticos, no caso específico, sobre a questão ambiental. “O que o presidente Macron sugeriria seria uma gestão internacional sobre a Amazônia, o que é completamente indevido. O presidente Bolsonaro, então, acabou recebendo de presente uma questão que conquistaria apoio domesticamente”, complementa. 

O apoio doméstico veio porque o País não gostou de intervenção externa em assuntos territoriais brasileiros. Quando o presidente se opôs aos palpites internacional, a população ficou ao seu lado. No entanto, Oliveira comenta que o presidente errou no tema quando partiu para questões pessoais. “É legítimo que ele diga isso [soberania nacional na Amazônia], mas também é necessário que tenha respostas domésticas sobre o problema e esteja aberto a cooperação internacional”, aponta o especialista, e completa: “Uma coisa é estar aberto a cooperação internacional, outra coisa é aceitar uma ingerência externa.”

Cooperação internacional

É uma nova era para o Brasil, analisa Oliveira. Ele comenta que, ao mesmo tempo em que as prioridades do País se alteraram drasticamente, outras temáticas permanecem com a mesma postura”, e exemplifica sobre a persistência de um acordo entre Mercosul e União Europeia. Mas o peso de um discurso nacionalista e de intensa soberania não será desconsiderado pelas potências internacionais. 

As consequências de uma postura cada vez mais unilateral podem ser negativas. Oliveira afirma que haverá um impacto na imagem do País, que traz mais proximidade com governos mais à direita e afasta os com tendências de esquerda. “O objetivo é que tenha e que seja feita e firmada uma aliança conservadora. Isso é um dos termos estratégicos”, explica. Segundo ele, ainda não é possível saber o quanto as afirmações geraram impacto negativo a ponto de interromper acordo. “Mas dificulta as negociações”, declara.

Oliveira acredita que Bolsonaro esteja aberto à cooperação internacional, mas que seleciona seus parceiros. “Ele aceitaria a cooperação dos Estados Unidos, mas não aceitaria a da França. Ele está aberto de maneira seletiva, correspondente às suas prioridades em termos de aliados estratégicos internacionais.”

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