Pesquisa aponta como os sons influenciam na construção de identidades culturais

Princípio é válido tanto para fã-clubes na Internet quanto para a tradição de algumas tribos indígenas essencialmente sonoras

O que ouvimos influencia na formação de nossos grupos e da nossa própria identidade. (Imagem: Free Images)

A Internet revolucionou as formas de consumo fonográfico e permitiu com que novos comportamentos se estabelecessem na sociedade, inclusive a rivalidade entre fãs de diferentes artistas. Uma tese desenvolvida na USP discute sobre as origens dessa situação a partir da formação de identidades por meio de sons e desmistifica o aspecto visual como sendo predominante para gerar noções de pertencimento.

A ideia de abordar a música como formadora de identidades socioculturais a nível individual e coletivo partiu do pesquisador Fernando Cespedes, da Escola de Comunicações e Artes (ECA). Ele conta que seu interesse pela música e pela possibilidade de ampliar o debate em relação aos impactos da Internet nas preferências de um grupo o motivaram a elaborar seu doutorado, chamado Ser Sonoro: histórias sobre músicas e seus lugares. “Minha tese parte do princípio de que estamos sempre inseridos em um coletivo e de que, a partir disso, usamos nossas características individuais – como o gosto musical – para nos inserirmos em determinada comunidade”, explica.

Para fundamentar a discussão, Cespedes se valeu da teoria do filósofo alemão Peter Sloterdijk, exposta na trilogia Bolhas, Globos e Espumas. “Cada ‘bolha’ representa um tipo de comunidade fechada, a qual propicia a criação de uma identidade pelos participantes desse grupo. A partir do momento em que esses indivíduos passam a ter contato com outras realidades, essas bolhas evoluem até se tornarem o que o autor chama de ‘espuma’, na qual as fronteiras não são tão definidas, e choques acontecem, podendo levar à incorporação de diferentes comportamentos ou à resistência ao diferente”, conta. Isso se aplica não só aos espaços comunicativos, mas também a diversas questões políticas e sociais, incluindo religião e sexualidade.

A música é capaz de consolidar tribos – literalmente

Em relação ao cenário musical, a Internet influenciou diretamente na maneira de produzir e consumir esse tipo de conteúdo. Nesse sentido, os fãs passaram a comprar mais músicas online e reconhecer uns aos outros como apreciadores da mesma banda ou performer, principalmente nas redes sociais. Com isso, membros de diferentes fandoms (comunidades de fãs) passaram a ter contato com usuários que possuíam diferentes gostos musicais, potencializando a expansão de repertório musical ou as rivalidades entre diferentes grupos.

A tese justifica esse cenário a partir do argumento de que, apesar da forte influência do coletivo na formação identitária, a individualidade ainda é um fator decisivo para a criação da chamada “espuma” de Sloterdijk, ou seja, o contato com novas realidades. Além da dificuldade de lidar com opiniões divergentes, “dentro de um grupo, uma pessoa adquire uma noção de pertencimento, mas também surge a vontade de se destacar entre seus semelhantes. Isso é um dos vários motivos para que ocorram dissidências até mesmo dentro das ‘bolhas’.

Como a música é uma forma de comunicação, ela também pode suscitar conflitos. Fernando cita um exemplo o acontecido na edição brasileira do Rock in Rio de 2013, na qual um homem foi agredido por vários fãs de heavy metal ao exibir uma faixa com os dizeres “Molejo é melhor que Iron Maiden” durante o festival.

No entanto, a dinamicidade do “Ser Sonoro” não impacta a cultura apenas de forma a criar tensões, e também não é restrito à cena musical. Pensando nas raízes culturais da apropriação de sons como fator identitário, o pesquisador traçou uma comparação entre a sociedade moderna ocidental – cuja forma de compreensão de mundo predominante é aquela feita por meio de aspectos visuais – e algumas tribos indígenas essencialmente sonoras, como a Pataxó.

A intenção do autor com essa comparação foi a de chamar a atenção de como nosso mundo é tão visual que acabamos não percebendo a influência dos sons na nossa formação como indivíduos e como sociedade. “Tudo ao nosso redor acaba por privilegiar a visão – até mesmo o ambiente acadêmico, já que, mesmo falando de música, eu preciso encontrar palavras que possam ser lidas por outros para descrever minha tese. E além de cultural, isso é uma questão fisiológica também, já que nosso cérebro é adaptado para compreender o mundo a sua volta se baseando primeiro na visão”, defende.

Hoje, Fernando pretende expandir essa discussão com a produção de um podcast chamado Ser Sonoro, que complementaria sua pesquisa. É possível ter acesso a esse trabalho por meio deste link, no qual consta inclusive o resultado do estudo de tribos indígenas de cultura essencialmente sonora.

Áudio x Visual

Mesmo com tantas dissidências, Cespedes garante que não há um sistema cultural melhor que outro – eles são apenas diferentes entre si e impactam as formas de construir uma identidade grupal de acordo com suas características. Na modernidade, a preponderância visual é notável em todos os meios de comunicação, e já vem mudando hábitos sociais. Dados divulgados pelo YouTube no fim do ano passado indicam um crescimento de 135% do consumo de vídeos online pelos brasileiros em relação a 2014. Estima-se que o internauta gaste 19 horas por semana com essa atividade, seja pelo computador, smart TV ou smartphone.

A relação disso com a música é que o apelo visual sempre esteve presente na indústria fonográfica. Hoje em dia, cada vez mais associamos uma canção a seu clipe, por exemplo. “Isso já acontece há um bom tempo e vai continuar sendo uma tendência por conta das questões estruturais (e, consequentemente, identitárias) criadas pelas músicas e pela nossa sociedade. Esse fenômeno só tende a enriquecer nossa experiência e facilitar o reconhecimento e o acesso a novos estilos, fazendo com que nossas ‘bolhas’ se tornem ‘espuma’. Mas é claro que isso pode acabar gerando uma maior noção de alteridade, na melhor das hipóteses, ou continuar sendo motivo para rivalidades que sempre existiram”, conclui o pesquisador.

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