Pânico moral e estado de negação de juízes contribuem para encarceramento exagerado

Juiz Marcelo Semer analisou centenas de sentenças de pequenos traficantes de drogas e apontou falhas e vícios de magistrados

A penitenciária federal de segurança máxima de Brasília, dentro do Complexo Penitenciário da Papuda (Valter Campanato/Agência Brasil)

Jogando luz sobre as causas dos problemas de encarceramento no Brasil, o juiz Marcelo Semer procurou entender melhor a distribuição de condenações por tráfico de drogas no País. Desse modo, em sua tese de doutorado pela Faculdade de Direito da USP, o magistrado analisou centenas de sentenças e, focando no chamado microtráfico, procurou entender porque se prende tanto aqui.

Em sua pesquisa, Semer distribuiu de forma representativa seu espaço amostral, de modo a evitar distorções. Desse modo, houve proporcionalidade entre diferentes estados e também entre interior e capitais. Ao longo de dois anos o pesquisador trabalhou em sua coleta de dados e quantificou características como a forma de apreensão da droga, profissão declarada do traficante e regime de pena aplicado.

Nesse último quesito, houve destaque para o elevado grau de condenações ao regime fechado no estado de São Paulo, batendo a casa dos 90% dos casos. Em contraste, a média nacional gira em torno de 69%, ao passo que no Maranhão, por exemplo, pouco mais dos 30% dos condenados são levados a esse regime. O juiz conseguiu apurar, e isto é seguro, que São Paulo tem um índice muito menor de respeito à jurisprudência dos tribunais superiores. Os juízes preferem fundamentar suas decisões em acórdãos do Tribunal de Justiça do estado e não do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal. “Isso faz com que algumas questões sejam decisivas para o impacto das penas, principalmente nas duas mais relevantes em termos de aplicação da pena: a negativa em aplicar penas restritivas e a fixação generalizada em regime fechado, quando o STF entendeu que a obrigatoriedade deste regime é inconstitucional”, comentou Semer sobre a peculiaridade paulista.

O gênero dos condenados, a ausência de co-autorias e a origem das prisões também foram fatores que apresentaram predominância de um tipo específico. Assim, tem-se que 85,49% dos réus são homens e em 71,75% dos casos não há co-autoria do delito. Em soma, 88,75% das apreensões surgem de flagrantes, contra 11,25% de investigações prévias.

O excesso de prisões sem investigação prévia contrastou com o fato de que em 48,88% dos casos houve apreensão de drogas no interior da residência e só em 16,62% houve mandado prévio de busca e apreensão. As explicações oficiais se apoiam nos casos onde houve uma apreensão prévia em vias públicas seguida de apreensão nas residências e nos casos onde os agentes relataram ter a entrada franqueada pelo réu. Todavia, o pesquisador relata que muitas vezes os relatos policiais são tomados como verdadeiros sem a devida apuração, e cita casos onde agentes relataram ter apreendido drogas após indicação espontânea dos presos, sem que isso gerasse desconfiança.

“ele confessou que de fato estava traficando entorpecentes naquele local,

levando em seguida os policiais até um quarto, onde em cima de uns blocos foi

encontrada a cocaína…”g.n. (sentença-088).

 

“…o denunciado 2 [com quem até então nada fora apreendido], teria

confidenciado aos policiais militares que havia outras porções de tóxicos

escondidas em sua residência, sendo realmente arrecadadas outras 28 pedras

de crack.” g.n.(sentença-102).

Pânico moral

De acordo com Semer, um dos principais motivos para condenações duras a micro-traficantes (as medianas de quantidade apreendida são de 66,1 g de maconha e 13,36 g de crack, por exemplo) se deve à imagem extremamente negativa que se tem de um traficante, num pavor que impede a devida diferenciação entre pessoas que aderiram ao tráfico por necessidade (não que isso faça o ato justificável) e aqueles que realmente movimentam o negócio, contribuindo e financiando grande parte da violência urbana.

Semer ligou esse fenômeno aos conceitos de pânico moral e estado de negação, explorados pelo sociólogo Stanley Cohen. Assim, o pânico moral ajudaria a construir uma imagem singular do traficante como inimigo primário da sociedade. Paralelamente, o estado de negação contribuiria para a leniência com diversas provas frágeis e controversas, negando a existência de violações por parte dos agentes público ao longo de processo. “A guerra às drogas foi incorporada por aqui fielmente. A começar pela mídia, que faz uma cobertura sensacionalista e cobra punições. O pânico tem sido o instrumento justificativo de maior repressão, sem que tenha qualquer contribuição positiva. A guerra às drogas é uma política falida, mas persiste porque ainda rende votos”, comentou o juiz, também fazendo referência à política de combate às drogas muito estimulada por países como os EUA — principalmente desde o governo Richard Nixon, na década de 70.

Alternativas

Questionado sobre vias alternativas ao encarceramento de microtraficantes, o magistrado enfatizou que a legalização das drogas seria uma alternativa que pouparia a sociedade de desgastes. “A melhor opção é a legalização; mantido comércio de drogas criminalizado, penso que se deve evitar o tanto quanto possível as penas privativas de liberdade. Há várias opções entre as restritivas de direito, que tendem a ser muito menos lesivas aos réus e à sociedade”, opina.

Além disso, abordou o excesso de prisões preventivas, submetendo pessoas ainda passíveis de absolvição ao nocivo ambiente carcerário. “A teor das regras constitucionais, a prisão deveria ser uma exceção e a liberdade como regra. Está totalmente invertido. Mais do que ineficientes ou desnecessárias, a generalização da prisão antes da condenação é um abuso. As fundamentações dos juízes estão mais ligadas à gravidade abstrata (do tráfico de drogas) do que propriamente a alguma necessidade cautelar, como destruição de provas ou fuga. Prende-se porque ‘o tráfico é grave’; a fazê-lo, o tráfico fica ainda mais grave, porque causa inchaço na população carcerária”, argumentou.

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