Por Beatriz Crivelari, Giovanna Stael, João Pedro Malar, Laura Scofield, Mariah Lollato e Tamara Nassif
Uma pesquisa conduzida pelo Pew Research Center nos Estados Unidos, em janeiro de 2018, mostrou que 70% dos usuários de internet no país acreditam que a rede teve um bom impacto na sociedade. Entretanto, o número de pessoas que acreditam nisso tem decaído consideravelmente desde 2014, quando a pesquisa foi realizada pela primeira vez. É interessante notar que, ao mesmo tempo, houve um aumento da polarização e dos conflitos no ambiente digital.
Enquanto as pessoas que veem a internet como benéfica citam como justificativa o fato da rede tornar o acesso à informação muito mais fácil e rápido, além de possibilitar a conexão com outras pessoas, os que veem a internet como maléfica consideram o isolamento dos usuários e a disseminação de informações falsas como o principal fator para isso.
Essa pesquisa ilustra bem uma divisão recente: para muitos, a internet se tornou, hoje, um ambiente avesso ao diálogo. Para outros, ela possibilita que haja esse diálogo entre sujeitos com ideários divergentes. Ainda que as visões sobre o assunto sejam distintas, uma coisa é certa: as discussões da esfera digital já respingam nas relações humanas e afetam o dia a dia.
“Somos seres evolutivos, nos adaptamos aos mais diversos tipos de ambientes e condições”, afirma Vitor Muramatsu, pesquisador do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), com mestrado em influência da comunicação digital nos vínculos humanos. Ele explica que as Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC’s) são recursos intermediadores da forma como interagimos e perpetuamos informações. Estão presentes em várias esferas e, ao nos adaptarmos a elas, afetam nossas relações.
O pesquisador usa como exemplo as discussões que tomaram conta da esfera social durante as eleições de 2018. “Certamente, muitos de nós tivemos discussões acaloradas com pessoas de convívio próximo ou familiares. Isto gerou grande sofrimento psíquico por conta do afastamento de pessoas com opiniões distintas. A sensação é de que uma reaproximação é impossível por conta do conceito que cada uma tem sobre assuntos importantes”.
Além disso, a internet já ajuda a eleger políticos e propagar múltiplos discursos. Segundo Muramatsu, a Primavera Árabe foi o primeiro grande evento global em que o mundo digital influenciou claramente o movimento político. As redes sociais tiveram também papel de destaque nas manifestações de junho de 2013, as maiores no país desde o impeachment de Fernando Collor de Mello em 1992.
Ainda que oriundos de contextos diferentes, esses movimentos se apropriaram do mundo digital para tomarem corpo nas ruas. De acordo com Massimo di Felice, professor de Teoria da Opinião Pública em Contextos Digitais na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), o que os compila em uma unidade é a ecologia da ação. “Esse tipo de ecologia, que não é mais centrada no sujeito nem o separa do território, cria uma forma de interação composta não apenas por humanos, mas por dados, algoritmos, imagens”, explica. Esse tipo de contato é chamada de net-ativismo, um conceito cunhado pelo grupo de pesquisa transdisciplinar internacional Atopos, que estuda redes digitais e a história da conectividade.
Mas como a internet evoluiu até o ponto de ser palco para a organização de movimentos sociais e de acaloradas e polarizadas discussões?
A evolução do uso da internet no Brasil
No país, a internet existe a nível comercial há 20 anos, onde “causou, e ainda causa, mudanças nas relações humanas, divididas em diferentes fases”, explica a professora Daniela Osvald Ramos, também da ECA-USP. Para ela, a polarização seria a fase mais recente, iniciada há, aproximadamente, cinco anos, com um intenso uso de algoritmos, que rapidamente evoluíram para “uma dinâmica de formação tendenciosa, no sentido de unir grupos com pensamentos e gostos semelhantes em bolhas nas quais só se encontra mais do mesmo”, explica a professora.
Nessas bolhas digitais, o diferente é rechaçado, eliminando a possibilidade de debate. Ironicamente, em sua origem, a internet tinha como objetivo propiciar o diálogo, em especial com fóruns de debate. “Antes a internet era um lugar de idealizadores, pessoas que queriam e viam a possibilidade da conexão para proporcionar um mundo melhor, com práticas alternativas ao Estado”, comenta Osvald.
Com a facilidade de acesso e expansão de redes sociais, a adoção em larga escala da internet cria, porém, uma lógica comercial, de forma a alterar o propósito de possibilitar diálogo. Muramatsu sustenta: “As redes sociais e a internet tem um potencial enorme de conectar pessoas e conglomerar grupos em prol de uma causa ou ação. No entanto, o que temos visto é o uso das redes a favor de interesses financeiros”. Isso levaria à adoção de algoritmos, com um sistema de polarização e agrupamento que aumenta a rentabilidade das grandes empresas de comunicação, mas também influencia os relacionamentos de hoje.
Osvald apresenta outro elemento interessante: o surgimento dos Chans. Esses fóruns tinham como característica uma polarização natural, resultado da escolha por utilizar “pontos de vista que não são democráticos, em que se falavam do que não se falava nas mídias convencionais”, explica a professora. Para ela, “os fóruns alternativos foram balões de ensaio de discursos potencialmente polarizadores”, que então foram utilizados e implementados na esfera comercial da internet, em especial nas redes sociais.
A mudança do ambiente comunicacional da internet também é resultado de mudanças na sociedade. Em um contexto de mudanças estruturais, em especial econômicas e comportamentais — geradas exatamente por avanços tecnológicos e pelo acesso à informação — criou-se uma “sensação de perda de referenciais comportamentais”, explica Osvald. Essa sensação leva à busca por novos referenciais e semelhantes, encontrados na internet, e estimula a formação de bolhas. A internet, por ser um espaço de liberdade de expressão onde se pode falar o que se sente, permite a propagação de discursos de ódio ou não democráticos. “As pessoas usam um meio que surgiu para trazer mais democracia para eliminar a própria democracia”, conclui a professora.
Um outro contribuinte para essa polarização é o que Osvald chama de “disfunção narcotizante”, que está em seu máximo na atualidade. Ela é caracterizada por um excesso de informações e agentes comunicativos, que levam ao anestesiamento da pessoa. “Muita informação é sinônimo de nenhuma informação”, comenta Osvald. Isso demanda um mecanismo de sobrevivência cognitiva e, para alguns, faz com que as pessoas selecionem o que é verdadeiro ou falso a partir de crenças ou gostos pessoais. As fake news trabalham exatamente com essa lógica, aumentando o fluxo de informações e apelando para crenças e gostos de indivíduos para gerar credibilidade.
Esse retrato demonstra que a polarização é apenas uma consequência de um processo com diversas camadas. E, além disso, não se originou na internet, mas apenas encontrou ressonância nesse meio em um contexto de crescimento de uma tendência polarizadora. Osvald ressalta que “a internet é um meio para as pessoas saírem do armário, com uma ilusão de anonimato. As pessoas falam o que não falariam ao vivo”.
Muramatsu ressalta que o pensamento humano é, por natureza, rico, complexo e não polarizado. “O empobrecimento das nossas formas de comunicar e a escassez de tempo, que concorre com a qualidade e profundidade do pensamento, são os responsáveis por empobrecer o discurso e dar a sensação de polarização”, afirma o pesquisador. Isso resulta em um agir pautado na ideia de que tudo é “uma questão de sim ou não, certo ou errado, homem ou mulher, direita ou esquerda”.
Ele cita a possibilidade do uso de bots nos algoritmos e a simplicidade na linguagem das redes como possíveis causadores deste fenômeno. “A velocidade com que nos comunicamos na internet exige símbolos que carregam sentidos muito pobres frente à complexidade dos nossos pensamentos e sentimentos”, diz Muramatsu. Os emojis são exemplo disso: “Um emoji triste nunca será capaz de transmitir a dor do luto; um com vergonha jamais falará da dificuldade de socializar ou de uma timidez ligada a um trauma de constrangimento”, afirma. O pesquisador diz que tudo isso “nos dá uma falsa sensação de binaridade, quando na verdade somos muito mais ricos, complexos e interessantes que isto”.
Durante a edição 200 do podcast Mamilos, em que o debate era sobre as manifestações ocorridas em maio de 2019, o professor Pablo Ortellado da Escola de Artes e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (EACH-USP) comenta sobre a polarização intensificada pelo funcionamento das redes sociais: as mídias possuem estruturas muito diferentes das de sistemas de comunicação em massa. Nesses sistemas, nos quais existe apenas um único centro que emite informações para um público amplo, o conteúdo pode ser, e normalmente é, mais analítico e brando. Nas redes, por outro lado, a informação que tem potencial para viralizar é aquela carregada de apelo. Isso quer dizer que a estrutura das redes sociais premia conteúdos indignantes, que circulam mais facilmente por causa dos algoritmos.
E como sair dessa situação? Para Osvald, é essencial que exista uma educação quanto ao uso da internet e da forma como nos informamos nela. Esse processo, chamado de educação midiática, visa a leitura e uso críticos da internet. Além disso, estimula o uso saudável, evitando os impactos, por exemplo, na rotina de sono de uma pessoa. O objetivo dessa educação seria levar entendimento sobre como funciona a internet, mostrar o que está por trás dela e, acima de tudo, recuperar a capacidade de dialogar. “As pessoas perderam a capacidade de se comunicar. Daí vem o fenômeno da polarização”, conclui Osvald.
Na mesma linha, Massimo di Felice argumenta que a dualidade é criada a partir da incapacidade do pensamento político se renovar. “Num contexto de esfera pública, portanto anterior às esferas digitais, a democracia deveria ser baseada em debates racionais sobre propostas, conteúdo. Tudo se tem no Brasil, menos isso. Ninguém discute nada, é só uma defesa cega de um lado e ataque do outro. É uma lógica messiânica, religiosa, em que o mal está todo de um lado e o bem, de outro”, sustenta. A internet, nesse sentido, conecta o que é a sociedade. Ou seja, ela não cria esse fenômeno, mas o possibilita e abre campo para que se reproduza em outros espaços. “O que determina o conteúdo são os pensamentos da sociedade, e a internet, sobretudo o Facebook, gera a sensação de centralidade individual. Mas ela não tem o poder de criar um traço congênito da sociedade, só de o permitir em seu espaço”, explica di Felice.
A falta de conteúdo, debates de ideias e renovação do pensamento político, segundo di Felice, cria um estado binário em que se procura uma única constante que justifique um determinado contexto ou acontecimento — uma “monocausa”. Ele comenta: “O social é complexo, os atores que intervêm são múltiplos. Quanto mais abrangente for a análise, mais chances terá de abarcar a complexidade do fenômeno e conseguir relatá-lo sem o matar com simplificações”. Essa binaridade é indicativa do maniqueísmo em que as estruturas da sociedade se sedimentaram e que divide o mundo entre dois pólos: o bom e o mau.
A democratização do acesso à internet
Di Felice, ao pontuar sobre a importância da internet para o meio público, para além das esferas de polarização, ressaltou sua função democratizadora. “A internet possibilita o acesso de todos à palavra pública, que era antes dominada pelos líderes de opinião nos meios de comunicação em massa. Índios defendendo a própria terra, meninos da periferia relatando a própria visão da periferia na cidade, ou seja, atores que nunca tiveram acesso à esfera pública, que sempre eram objeto e nunca sujeitos e que, com a internet, ganharam voz”, argumenta.
Um estudo realizado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) constata que existe mais de um smartphone por habitante no Brasil. Contudo, sobre o uso das redes sociais, o relatório Digital in 2018: The Americas, divulgado pelas empresas We are Social e Hootsuite, aponta que pouco mais de 60% da população brasileira está ativa nas redes sociais. Ou seja, ainda que seja números significativos, boa parte da população não faz parte dessa realidade. Isso não significa que essas pessoas estejam ilhadas, alheias ao que é discutido online. Nota-se que as informações circuladas nas redes sociais são repassadas às pessoas que não as integram por meio da comunicação cotidiana. Isso gera o efeito de “telefone sem fio”, já que o conteúdo, ao ser reproduzido e propagado por diferentes indivíduos, acaba se modificando e ganhando diferentes contornos.
Assim, ainda que as redes sociais não sejam exatamente representativas, por excluírem o terço mais carente da população, Ortellado aponta — ainda durante o podcast Mamilos de número 200 — que elas estão, certamente, impactando o Brasil. O professor afirma que, hoje, os pesquisadores e estudiosos precisam ficar atentos ao que acontece nas mídias sociais, porque elas têm capacidade de influir, de fato, na realidade. Dessa forma, as redes sociais configuram-se não como um espelho da sociedade, mas como um indicativo do que pode acontecer.
Os algoritmos nas redes
As possibilidades da internet, mesmo finitas, são muito maiores do que se pode imaginar. Uma simples palavra, quando jogada no Google, pode gerar milhões de resultados em menos que um segundo. Mas o que define qual resultado é mostrado primeiro? Como redes como o Facebook, Twitter ou Instagram escolhem quais publicações priorizar e quais não? Como os anunciantes advinham, quase que magicamente, qual o melhor produto para ser exposto ao usuário? Mais importante, como os mecanismos de organização da informação nas redes contribuem para a polarização do mundo?
As respostas a todas essas perguntas perpassam por um só conceito: os algoritmos.
Dentro da Ciência da Computação, os algoritmos são definidos como sequências de ações executáveis que buscam soluções para determinados problemas. Isso quer dizer que eles transformam um dado em outro a partir da operação de uma sequência pré-definida. O professor Rodrigo Mello, do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) do campus de São Carlos da Universidade de São Paulo, trabalha com a análise de algoritmos em Tweets.
Os algoritmos definem como as redes respondem aos usuários. De acordo com as buscas, palavras mais digitadas e outras interações, determinam o que é mais ou menos relevante para cada pessoa. Porém, a forma com a qual fazem isso é segredo juridicamente garantido, sendo que, como as redes são, em geral, softwares de código fechado, não se pode saber o caminho que os dados percorrem dentro delas. Mello afirma que é possível prever, em partes, como os algoritmos vão atuar, já que eles contam com uma sequência pré-definida. Entretanto, ele completa que “tudo depende do conteúdo das mensagens publicadas.”
Por determinarem a relevância de cada informação a partir dos temas já pesquisados pelo usuário, eles acabam gerando as ditas bolhas sociais. Isso porque tendem a mostrar sempre mais do mesmo, excluindo a diversidade das opiniões. Como resultado, formam-se posições cada vez mais extremas e polarizadas, já que as redes sociais geram a impressão de que determinada visão é predominante e, portanto, a única correta. Para Mello, entretanto, os algoritmos não são os culpados. “Pessoas geram polarização”, ele diz. Os algoritmos, portanto, apenas representariam algo já existente, sendo que a polarização pode ser fruto das mais diversas formas de se lidar com os dados.
Perspectivas digitais
Observa-se que as próprias figuras políticas contribuem firmemente para um cenário de polarização. Como analisa Pablo Ortellado, após eleito, o presidente Jair Bolsonaro não adotou, como seria de praxe, um discurso pacificador, com a ideia de que o chefe do executivo deveria governar para toda a nação. Ao invés disso, há ainda uma clara separação sobre para quem o discurso é direcionado, para qual brasileiro governará, em uma clara atitude polarizadora que se aproveita das redes sociais para tanto.
É importante ressaltar que existem muitas visões sobre o grau de influência da internet na polarização vivenciada por diversas sociedades na atualidade. Entretanto, é inegável que ela revolucionou a forma como as pessoas se relacionam, tanto para o bem quanto para o mal.
Acima de tudo, a internet não consegue, sozinha, produzir nenhum efeito. Para isso, ela depende, como qualquer meio de comunicação, de seu usuário. Desde um algoritmo até um comentário no Twitter, tudo que está na internet é produzido por indivíduos, e, portanto, sofre influência deles. Se encontramos um ambiente hostil, segmentado e polarizador no meio digital, os culpados são, no fim, os seus próprios utilizadores. E não há bolha que esconda essa verdade.
Texto muito bom e esclarecedor sobre muita coisa, parabéns pelo trabalho.
ADOREI. MUITAS FAMILIAS E AMIGOS BRIGARAM E DESFIZERAM LAÇOS AFETIVOS, QUANDO NA VERDADE, ESTAMOS SENDO APENAS EXPERIMENTOS.