Estudantes de medicina com sono prejudicado têm pior qualidade de vida

Crédito: D. Sharon Pruitt/ www.pinksherbet.com

A maior sonolência do estudante de medicina no Brasil teve forte associação com uma menor qualidade de vida. A relação foi estudada em tese de doutorado, aprovada pela Faculdade de Medicina da USP. A pesquisa avaliou uma amostra aleatorizada de 1.350 alunos provenientes de todas as regiões brasileiras, distribuídos proporcionalmente entre sexos e anos da graduação. Outra correlação notada com a sonolência foi a percepção do próprio espaço de ensino como algo mais negativo em relação aos alunos que eram menos sonolentos.

Foi necessário que a pesquisa se realizasse de forma multicêntrica para que o estudo representasse os estudantes em âmbito nacional. Sobre isso, o autor da tese aprovada em fevereiro deste ano, Bruno Perotta, explica: ”Tivemos uma oficina com os professores que participaram, de vários lugares do Brasil, para padronizar o modelo de abordagem”. Também receberam indicações sobre o procedimento que deveria ser tomado para a formação de uma amostra aleatória de alunos.

A pergunta que moveu a tese de Bruno foi: “Será que a sonolência faz mal para o bem-estar do estudante?”. Para buscar respondê-la, ele observou o sono em relação a dois outros fatores – a qualidade de vida e a percepção do ambiente de ensino.

Bruno Perotta é especialista em endogrinologia, recém-doutor pela USP e professor universitário. Crédito: Ana Gabriela Zangari Dompieri

A sonolência foi avaliada por meio de três instrumentos que examinavam o sono de perspectivas diferentes. Todos tinham o formato de questionário e eram respondidos e enviados por computador pelos próprios estudantes em sala de aula ou em casa.

O primeiro comparava o número de horas dormidas na semana às no fim de semana. Um maior tempo de sono aos fins de semana podia sugerir privação durante os dias úteis. Outra escala averiguava o nível de sonolência diurna do estudante (ESE), mensurando a chance de ele cochilar em oito situações do dia (o aluno recebe pontuação de 0-24 e a obtenção de mais de 10 pontos indica sonolência excessiva). Ainda houve um questionário para analisar a qualidade das horas de sono (PSQI-BR).

A qualidade de vida foi medida por meio de outros três questionários autoavaliativos. Um deles, mais geral, e os outros dois, mais específicos, divididos em quatro dimensões cada. A Organização Mundial da Saúde (OMS) define qualidade de vida como: “a percepção do indivíduo sobre a sua posição na vida, no contexto da cultura e dos sistemas de valores nos quais ele vive, e em relação a seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações”.

A organização é autora de um dos questionários utilizados, o Whoqol-Bref, uma versão reduzida, com 26 questões, do Whoqol-100, outro documento de estrutura semelhante, mas que conta com 100 perguntas. Elas se dividem entre os domínios físico, psicológico, social e de meio ambiente.

O outro questionário (Veras-Q) foi criado, em tese anterior, da orientadora de Bruno, para medir qualidade de vida de estudantes da área da saúde. Nele, são apresentados os campos físico, psicológico, do ambiente de ensino e, também, do uso do tempo – ou seja, quanto o aluno consegue gerenciar suas horas para dedicar-se, inclusive a atividades fora do curso.

O fator avaliado em paralelo à sonolência, além da qualidade de vida, foi o da percepção do ambiente de ensino. Para essa avaliação, foi empregado o questionário Dreem, desenvolvido pela Universidade de Dundee, na Escócia. Segundo Bruno, a elaboração do documento contou com “a colaboração de educadores de várias partes do mundo, com o objetivo de desenvolver um instrumento não culturalmente específico”.

Na percepção do ambiente de ensino foram levados em conta a percepção sobre o aprendizado, os docentes, o desempenho acadêmico, as relações sociais e, propriamente, o ambiente.

Ao final, foi confirmada a hipótese de que uma pior sonolência se associaria tanto a uma pior percepção do ambiente de aprendizado, quanto a uma pior qualidade de vida.

Divergências

Graus patológicos de sonolência diurna foram apresentados por 46,5% dos alunos e foram mais prevalentes em mulheres. Elas também tiveram pontuações menores em qualidade de vida – nos domínios físico e psicológico do Whoqol-Bref, e uso do tempo, psicológico e físico do Veras-Q.

É possível que essa diferença tenha aparecido por uma tendência do público feminino a ser mais crítico frente aos questionários, ou por uma maior propensão das mulheres a ter ansiedade e depressão, o que pode influenciar o sono. Entre anos do curso, o que mudou principalmente foi que alunos do 5º e 6º anos apresentaram pior visão do ambiente de ensino, bem como as mulheres no geral.

Bruno é professor universitário há mais de dez anos e, por isso, tem contato com a rotina dos estudantes. Sobre possíveis soluções para a questão da sonolência, ele comenta: “Acho que faria muita diferença se houvesse equipes de suporte do estudante que sugerissem medidas de gestão do tempo; intervenções baseadas em um acompanhamento periódico e institucional que ajudasse o estudante a organizar suas tarefas”.

Por que da medicina?

O estudo de Bruno Perotta centrou-se nos alunos de medicina por um interesse vindo da sua própria vivência, já que ele se formou como médico. Além disso, a pesquisa feita na sua tese de doutorado se vincula a uma série de pesquisas inaugurada com a aprovação da tese de doutorado da sua orientadora, Patrícia Tempski, em 2008.  Os responsáveis por elas são um grupo de pesquisadores que estudam o sono e o estudante de medicina e é parte do Centro de Estudos em Educação Médica (Cedem),  que ajuda a aprimorar o ensino a partir de processos de desenvolvimento docente, de avaliação dos estudantes e do programa do curso.

Além disso, a graduação em medicina depende de maior carga horária, com um mínimo de 7200 horas, segundo o Ministério da Educação, e, conjuntamente, mais anos de dedicação e maior quantidade de conteúdo.  

Gráfico apresenta a grande diferença entre a carga horária do curso de medicina e de outras graduações no Brasil. Fonte: INEP, Censo da Educação Superior, 2016. Diagramação adaptada de: nexojornal.com.br

Bruno finalizou dizendo que um desejo futuro para a sua pesquisa é contemplar estudantes da área da saúde no geral, ainda que os perfis por curso sejam diversos entre si, de acordo com as demandas de cada graduação. Outra possível meta futura seria utilizar medidas objetivas do sono — como pelo uso do actígrafo, aparelho que mede a movimentação e as horas de sono do indivíduo —, já que as respostas foram por autoavaliação. Bruno diz o porquê disso já não ter sido feito: “Teríamos que ter tido mais de mil aparelhos para a nossa amostra. Mas talvez seja um próximo passo: fazer uma medida objetiva do sono”.

Leia mais:

Todos os questionários respondidos pelos alunos estão disponíveis nos anexos da tese do pesquisador, que pode ser baixada no site: Avaliação da sonolência do estudante de Medicina no Brasil e sua influência na qualidade de vida e ambiente de ensino.

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*