Novas técnicas facilitam identificação de leishmaniose canina

O reconhecimento de células auxilia na compreensão parasito-hospedeiro em diversas regiões de São Paulo

Imagem ilustrativa de cão junto ao mosquito-palha, vetor da leishmaniose | Reprodução

Pesquisas divulgadas pela Faculdade de Medicina e Zootecnia da Universidade de São Paulo (FMVZ-USP) procuram compreender a interação parasito-hospedeiro da leishmaniose visceral canina no estado de São Paulo e trazem melhoramento no diagnóstico da doença. Técnicas desenvolvidas marcam o parasito no tecido e indicam a presença do mesmo nas células, tendo um aumento da sensibilidade diagnóstica dos casos.

Entre os benefícios oferecidos pelo procedimento, destaca-se a facilidade na execução, baixo custo e possibilidade de avaliar o cão ainda em vida. A veterinária responsável é Juliana Mariotti Guerra, pesquisadora científica do Centro de Patologia do Instituto Adolfo Lutz. No local, também pôde desenvolver sua tese em conjunto com o Centro de Parasitologia e Micologia e de interdisciplinares da Instituição, que contou com a orientação do Professor Bruno Cogliati, do Departamento de Patologia da FMVZ-USP.

A leishmaniose visceral canina pode ser caracterizada como uma doença zoonótica (transmitida para o ser humano através de animais) causada pelo protozoário Leishmania infantum. Os cães são tidos como os principais hospedeiros urbanos e periurbanos do parasito, o que facilita a transmissão para os seres humanos. Por conta disso, é importante avaliar os casos animais para compreender os efeitos na população, ou seja, o número de cães infectados é um alerta para o possível número de moradores infectados daquele município, sendo necessário o aumento da vigilância epidemiológica na região.

A doença vai desde animais que não apresentam sintomas até outros severamente afetados. Entre os sintomas comuns, têm-se aumento de gânglios linfáticos (linfonodomegalia), aumento de baço (esplenomegalia) e aumento de fígado (hepatomegalia). Animais com alta carga parasitária de parasitismo cutâneo (relacionado à pele) podem apresentar manifestações clínicas cutâneas, como dermatites esfoliativas, nodulares, ulcerativas, entre outras. Têm-se também crescimento anormal de unhas (onicogrifose), manifestações oculares, em articulações e renais. Devido ao amplo espectro clínico, a doença é facilmente confundida com outras enfermidades, o que mostra a necessidade de um procedimento simples de diagnóstico.

A transmissão é feita por um inseto vetor do gênero Lutzomyia, tendo no Brasil como a principal espécie o Lutzomyia longipalpis, conhecido popularmente por mosquito-palha. “O vetor pica o cão infectado, adquire o parasito e facilita a transmissão para outros hospedeiros vertebrados”, explica Juliana. Além disso, os cães possuem um alto grau de parasitismo cutâneo, o que facilita o contágio.

Para realizar o diagnóstico laboratorial, foi utilizado um organograma feito pelo Ministério da Saúde. Em áreas endêmicas, ou seja, em que a doença já foi descrita, a vigilância laboratorial pode ser feita através da avaliação sorológica dos cães após retirada de sangue. São realizados testes rápidos e testes de Elisa (Enzyme-Linked Immunosorbent Assay/Ensaio de Imunoabsorção Enzimática) para confirmar a doença nos animais.

No entanto, em áreas não endêmicas, como em municípios do sudeste do estado de São Paulo, inclui-se algumas técnicas diretas para o diagnóstico dos primeiros casos autóctones, ou seja, naturais daquela região. Entre as técnicas utilizadas para identificar o parasito, é feito um teste parasitológico direto ou com imuno-histoquímica. Executa-se uma coleta por absorção de células por agulha fina, coloca esse material sobre lâminas de vidro e, por fim, cora o material retirado em panótico simples (corante utilizado em análises laboratoriais). Apesar de parecer fácil, têm-se alguns problemas nesse procedimento, pois é preciso ter um treinamento apurado de procurar e encontrar o parasito que está infectando tais células para, então, observar as amastigotas (células arredondadas de protozoários sem flagelo). “Encontrar o parasito significa que o animal está parasitado, mas não encontrar não significa necessariamente que ele não esteja, isso pois a sensibilidade do teste é muito baixa”, completa a veterinária.

Na imagem, técnica que procura reconhecer o parasito no cão. Indicados pelas setas, têm-se os parasitos com forma oval corados (marrom-claro) | Imagem cedida pela pesquisadora

Na imagem, técnica que utiliza punção por agulha fina. Observam-se, indicados por setas, amastigotas no interior de células | Imagem cedida pela pesquisadora

Isso está diretamente relacionado com a condição clínica do animal e sua quantidade de carga parasitária, caracterizada como a quantidade de parasito encontrada na amostra, que é diretamente proporcional à facilidade de transmissão de parasitos na região. “Uma vez que esses animais têm uma maior quantidade de parasito, a chance deles transmitirem uma maior quantidade para um vetor que talvez vá transmitir para outros hospedeiros é muito maior do que os animais que tinham menos carga parasitária”, explica Juliana.

Para facilitar a identificação, a pesquisadora passou a aplicar técnicas ainda pouco relatadas na veterinária, como a citologia em meio líquido, o emblocado celular e a imunocitoquímica, o que melhoraria a sensibilidade diagnóstica dos casos. A primeira utiliza um meio preservativo conservante, em que as células são colocadas em suspensão e são fixadas, permitindo a aplicação de técnicas complementares. Uma dessas seria o emblocado celular, o qual consiste na formação de uma preparação em parafina da citologia, o que alia a parte citológica e histológica do material, emblocando em parafina as células coletadas por citologia. Através da última, pode-se aplicar a imunocitoquímica, em que é utilizado um anticorpo específico para o marcador visado, neste caso, um anticorpo anti leishmania. Com isso, marca-se o parasito no tecido e mostra-se a presença do mesmo no material analisado, previamente coletado por citologia.

Juliana explicita que “o uso desses procedimentos fez com que facilitasse o encontro desse parasito através dessas técnicas de usos moleculares, aumentando assim a facilidade de observação e o aumento da sensibilidade com casos positivos”. Entre os benefícios do método, têm-se também a facilidade em sua execução, baixo custo quando comparada a outros e ainda permite a avaliação dos animais ainda em vida e em estágios iniciais da doença, colaborando na demarcação das regiões infectadas. Além disso, favorece o serviço de vigilância epidemiológica municipal, normalmente feito de casa em casa, pois permite a coleta amostral de forma simplificada.

Com o auxílio das novas técnicas, foi possível observar as respostas imunológicas e cargas parasitárias nos cães. A carga na região noroeste do estado de São Paulo é maior do que a encontrada na região sudeste, mesmo os animais demonstrando estar em estágios clínicos iguais (estágio 2). Nesse estágio, já há evidências de sintomas e os exames sorológicos são positivos. Observar o número de animais infectados abre espaço para investigar os casos humanos e efetuar maior campanha na localidade.

“Isso pode também estar relacionado a pensar em estratégias diferenciadas de controle da doença em diferentes regiões. Não aplicar apenas uma estratégia de controle comum em todas as regiões afetadas pela doença, o que normalmente acontece”, esclarece Juliana. Deve-se pensar mais na microrregião, ou seja, observar como alguns bairros são mais afetados do que outros e aplicar medidas de controle e prevenção que sejam adequadas.

Um grupo do Instituto Oswaldo Cruz, envolvendo as doutoras Elisa Cupolillo e Mariana Côrtes Boité, está estudando uma possível mutação no parasito. Foi avaliado o genoma da Leishmania infantum e descobriram uma região no cromossomo 31 do parasito que apresenta uma mutação: uma deleção em lócus relacionada a diversos genes vinculados tanto à parte de defesa do parasito sobre o hospedeiro quanto ao tratamento pelo novo fármaco miltefosina. Em seus estudos, Juliana avaliou nos cães a presença ou não de mutação. Isso comprovou, nas diferentes regiões geográficas, a prevalência da mutação em pontos específicos. Os animais que apresentam a deleção estão predominantemente na região sudeste, enquanto os que não apresentam, estão na região noroeste. A pesquisa terá continuidade em parceria com o Instituto Pasteur da França, a Faculdade de Medicina da USP, o Instituto Oswaldo Cruz e o grupo do Instituto Adolfo Lutz.

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