Governo Macri endurece a política migratória argentina

Pesquisa analisa as mudanças da política migratória argentina realizadas pelo presidente Macri

O presidente Mauricio Macri assinando o decreto que alterou a lei de migração argentina. Foto: Clarín

Dentre os países sul americanos, a Argentina sempre teve destaque quando o assunto era migração, cultivando uma política acolhedora. Mas isso mudou a partir de 2015, quando Mauricio Macri assumiu a presidência do país e a enrijeceu. E foi a partir do estudo dessa mudança que Romeu Bonk Mesquita desenvolveu sua dissertação de mestrado, defendida no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP).

A pesquisa, orientada pela professora Janina Onuki, busca explicar os fatores externos e internos que levaram a uma mudança na política migratória argentina com o governo Macri, analisando o período de 2015 a 2018. Mesquita destaca, já de início, que essa mudança não representou uma quebra completa em relação aos governos anteriores da chamada Era Kirchner, apresentando diversas continuidades.

Panorama geral

Antes de analisar a nova política migratória e seus agentes condicionantes, Mesquita contextualiza historicamente a relação entre a Argentina e os imigrantes. Assim como todos os países sul americanos, o pesquisador comenta que ela “teve uma formação populacional diretamente ligada à imigração, com destaque inicial para a européia, em um cenário de colonização da América”.

A Argentina, assim como diversos países da região, inclusive incentivou a vinda de europeus por dois principais fatores: era necessária a ocupação de um território recém-independente e parcialmente desocupado e também a presença de mão de obra para um país que visava crescimento econômico. Nesse cenário, os europeus receberam destaque devido a ideologias racistas de embranquecimento da população que circulavam na sociedade. Um lema do governo argentino nesse período foi “Governar é ocupar”.

Com o tempo, houve uma mudança do perfil de imigrantes que rumavam para a Argentina: sai o europeu, entra o latinoamericano. Esse padrão se manteve até os dias de hoje. Em sua dissertação de Mestrado, Mesquita aponta que, segundo pesquisas, “41,8% dos mais de quatro milhões de sul americanos que vivem em outro país que não o seu estão na Argentina”. A nação possui pouco mais de dois milhões de imigrantes em seu território, cerca de 4,9% da população.

Essa porcentagem é elevada para os padrões da região, com média de 2,6%. É a segunda maior da América do Sul, perdendo apenas para o Suriname. Mesquita destaca, porém, que a população argentina é muito maior que a surinamense, de forma a superar a quantidade de imigrantes numericamente. Desses 4,9%, 3,6% são de países que fazem fronteira com a Argentina, uma proporção que se mantém constante desde 1869.

Dos 2.164.524 milhões de imigrantes vivendo no país em 2017, 32,5% eram paraguaios, 20,1% bolivianos, 10,2% chilenos e 9,4% peruanos, constituindo as principais populações do país. Mesquita explica também que, com o tempo, isso levou à formação de “grandes comunidades dessas nacionalidades, com suas tradições e, inclusive, funções específicas”. É comum na Argentina encontrar vendas e outros estabelecimentos comerciais que são historicamente comandados por famílias originárias de determinado país.

É importante ressaltar, porém, que com o fim da necessidade demográfica, o governo argentino e a sua população já não viam mais com bons olhos a vinda de imigrantes. Essa situação piorou em dois momentos: a ditadura militar e a recente crise econômica do país.

A política migratória dos Kirchner

Durante a ditadura militar argentina, de 1966 a 1973, o governo adotou uma política migratória restritiva. A ideia, puramente nacionalista, era de fechar o país para os não-argentinos. Com o fim do regime, os governos seguintes passaram a, lentamente, adotar medidas de abertura de fronteiras, mas nada muito significativo ocorreu até o início do primeiro governo Kirchner, com Néstor Kirchner, em 2003.

Néstor adotou uma política bem mais receptiva e com uma visão mais social do tema. No ano da sua posse foi aprovada uma nova lei migratória, vista como pioneira na região, que substituiu a lei anterior, do período militar, e retirou, por exemplo, entraves burocráticos que dificultavam a inserção do imigrante na sociedade e sua naturalização. Um dos grandes motivadores dessa política foi o Mercosul, bloco econômico formado originalmente pela Argentina, Brasil, Uruguai e Paraguai.

Um dos objetivos do bloco era de aumentar a integração regional, e buscou dar destaque a questões sociais, como a imigração. “Inspirado” pelo bloco, Néstor implementou a nova Lei de Migração, assumindo um protagonismo regional na área com uma lei de referência no assunto. Outra característica da política migratória kirchnerista foi o privilégio dado a imigrantes de países do Mercosul, que tinham facilidades nos aspectos burocráticos ligados ao processo.

O Kirchnerismo ficou no poder de 2003 a 2015, com um mandato de Néstor e dois mandatos de sua esposa, Cristina, até ser derrotado nas urnas pelo então prefeito de Buenos Aires, Mauricio Macri.

A política de Macri

Mesquita observa que Macri se elegeu com uma “plataforma anti-kirchnerista”, logo seria natural que ele buscasse reverter diversas políticas adotadas pelo casal em 12 anos de governo. Isso ocorreu em diversas áreas, com destaques para a economia, já que o país passa, há anos, por uma fortíssima crise econômica, e não seria diferente na área de imigração.

É importante ressaltar que, mesmo em meio à crise, a imigração continuou com o seu padrão. Isso porque a Argentina ainda é bastante atrativa na região, seja pelas comunidades tradicionais já bem estabelecidas e receptivas para com seus semelhantes ou pela lei pioneira e moderna na área. Porém, o pesquisador do IRI comenta que, com o tempo, surgiu um sentimento xenófobo em parcelas da população argentina. Para alguns, os imigrantes estariam roubando as poucas vagas de emprego no país, além de prejudicar os que já vivam ali.

Após chegar ao poder, Macri adotou uma nova política migratória, cuja principal mudança é o seu entendimento sobre o papel do Estado na área. Segundo Mesquita, Macri “vincula migrações ao campo da segurança pública”. Ou seja, para ele, o Estado deve estar bem mais presente no processo imigratório e nas comunidades de imigrantes.

Essa visão se refletiu em mudanças práticas. Ex-membros de agências de segurança assumiram cargos de chefia nas agências ligadas à imigração, houve um aumento no número de deportações, mais segurança nas fronteiras e adoção de um discurso novo, que apresentava a necessidade do combate aos “maus imigrantes”, em especial traficantes. Também houve a tentativa de modernizar a fiscalização e desburocratizar a área, com a criação de aplicativos, por exemplo.

Mesquita destaca, porém, que as mudanças foram mais simbólicas. “Mesmo com um aumento das deportações, elas ainda representam um número muito pequeno frente às naturalizações anuais, que se mantiveram bem altas”, comenta o pesquisador. Além disso, os imigrantes de países do Mercosul, por exemplo, continuaram com seus benefícios e privilégios. Mesmo assim, Macri acabou adotando uma tendência global de restrição à migração, e associação dela a problemas de segurança e ilegalidade.

A principal mudança foi uma alteração na Lei de Migração por meio de um decreto presidencial, duramente criticado por pular o debate com o povo e o processo legislativo tradicional. As mudanças tornaram a permissão para entrada no país mais criteriosa, além de facilitarem e agilizarem o processo de deportação.

A nível nacional, a mudança está ligada a essa plataforma anti-kirchnerista, uma tentativa de demonstrar a realização de promessas de campanha e um distanciamento de organizações ligadas à área, que tradicionalmente apoiam os Kirchner. Já a nível internacional, o resfriamento do Mercosul e a consequente perda de espaço para diálogo sobre políticas regionais abriram margem para alterações, em um processo que Mesquita chama de “ressoberanização da política migratória”.

Com a eleição presidencial argentina marcada para o final deste ano, em meio a uma grave crise econômica, a falha do governo de Macri de resolver essa questão e as denúncias de corrupção que abalam as lideranças kirchneristas, resta saber qual lado controlará a Casa Rosada, e qual visão sobre a migração será empregada: a social ou a de segurança pública.

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