História do câncer e saúde coletiva andam lado a lado

Professor do hospital de oncologia infantil vê na história da doença uma forma de se conectar com pacientes-alunos

Cartaz da Rede Feminina de Combate ao Câncer, década de 1940. Crédito: Museu de Saúde Pública Emílio Ribas

As doenças têm história. As doenças fazem história. Ora como elemento principal, ora como elemento integrador de um cenário, elas ocupam páginas de livros ao lado de batalhas, artes, rainhas e territórios. O historiador e professor da Escola Móvel do Hospital do Graac, Elder Al Kondari Messora, autor da dissertação de mestrado A construção de um novo mal: Representações do câncer em São Paulo, 1892-1953, buscou nos registros antigos, as histórias que formariam a trajetória da doença.

Museu Histórico Prof. Carlos da Silva Lacaz. Imagem: Elder Al Kondari Messora

A ideia para a tese surgiu da vivência de Elder na Escola Móvel, onde leciona para crianças e adolescentes que estão em tratamento dentro do hospital. A iniciativa, que hoje é um setor do Graac, busca impedir que os pacientes infanto-juvenis percam o ano letivo. As aulas são particulares e se adaptam ao cronograma das escolas de origem dos jovens. Assim, ao final do ano, eles recebem notas e avançam nas séries escolares. A medida conseguiu erradicar a evasão escolar no hospital infantil. Como professor de história, ele encontrou alguns bloqueios na conexão com seus alunos.

“Aqui dentro do hospital é engraçado. O professor de química tinha muitas vantagens para dar aula, ele fala sobre quimioterapia com os alunos. Já o professor de biologia, de como as células funcionam e sobre a doença. Os alunos estão vivendo aquilo, querem saber o que está acontecendo com eles. Então vinha falar sobre a Idade Média e o paciente se pergunta o que esse tema interessa na sua condição. Por isso, comecei a me dedicar a entender a história do câncer, das doenças no geral, da medicina, dos hospitais, como uma estratégia de conteúdo para que pudesse cativar esses alunos.”

Os alunos da Escola Móvel aprovaram o método de Elder, que levava cada nova descoberta para as aulas e conseguia, a partir de um ‘assunto periférico, direcionar para o conteúdo’. A recepção foi tão efetiva, que o fez ir cada vez mais a fundo no assunto.

As quatro permanências do câncer

Ao longo da ampla análise de literatura feita pelo historiador, ele percebeu que quatro estâncias estão sempre vinculadas aos pacientes ou à própria doença, mesmo com o câncer tendo esse caráter multifacetário, no decorrer de 2.500 anos em que aparece em textos. Elas são: Nomenclatura, Invencibilidade, Individualidade e o Estatuto Maldito.

Cartaz profilático do Serviço Nacional do Câncer, década de 1940. Fonte: Acervo Mário Kroeff

O nome câncer, vem da latinização do grego Karkinos, ser da mitologia grega, que produz a relação visual entre animal e doença. “Hipócrates (considerado pai da medicina na Grécia antiga) ao olhar para um tumor e ver um inchaço com camada endurecida e veias mais grossas, chama de ‘tumor’ pois se parece com ‘um caranguejo com suas patas fincadas na areia, a casca mais grossa essa pele e as patas representando as veias que o inflam’”, conta o historiador sobre o surgimento do nome.

A definição de câncer hoje é completamente diferente. Segundo o Instituto Nacional de Câncer (Inca), é ‘a multiplicação desordenada de células que podem invadir órgãos e tecidos, e essa divisão descontrolada tende a ser agressiva podendo causar metástase’, que é a versão maligna. A definição referente às células só foi possível após a Teoria Celular proposta no século 19.

Por séculos a percepção de câncer foi mudando. Galeno, médico romano do séc II, dividiu os tumores em naturais (nariz, peito), não-naturais (um inchaço de pancada, por exemplo) e contrários à natureza (o câncer). Não se pode determinar com toda certeza se nessas histórias antigas se tratava exatamente da mesma doença. Contudo, mesmo com definições diferentes, o nome permaneceu.

A segunda permanência concentra-se na demora para encontrar tratamentos para a doença. A Invencibilidade do câncer se manteve por milênios, tornando-o sinônimo de morte. Em toda a história, médicos tentaram desenvolver formas de cura que se mostraram falhas. No início do século passado, por exemplo, foi até desenvolvida uma vacina ‘anti-cancerígena’ no Rio de Janeiro.

Fonte: Propaganda divulgada no jornal O Estado de São Paulo, 25 de maio de 1946.

“A terceira coisa que percebi foi que o câncer era algo individual. O sujeito que não seguiu um bom rumo na vida, tem que sofrer as consequências”. A Individualidade reflete na culpabilidade do paciente. Os responsáveis pela enfermidade foram muitos: maldições, mulheres promíscuas, conduta moral, cigarros, bebidas, alimentação inadequada, entre outros. Os culpados só mudaram de forma de acordo com o discurso moral da época.

O Estatuto Maldito é “o vexame que a doença suscita no doente que é acometido por ela”.  Essa vergonha se dá pelo caráter incapacitante do câncer. Heródoto, historiador grego do século 5 a.C. registrou as dores da rainha persa Atossa, esposa de Dario I, que sofria de um tumor no seio, que tentava esconder. Uma mulher acometida pelo tumor não conseguia cumprir seu ‘papel’ de mãe e esposa, o que lhe causava vergonha.

Ao se estender para o sexo masculino já na Idade Contemporânea, o constrangimento se relaciona com as concepções de produtividade do modelo capitalista.  Além de impossibilitar o enfermo da função produtiva, tira também as pessoas ao entorno para cuidar dele. A ideia de que ‘útil é aquele que trabalha’, torna o paciente um excluído da sociedade atual.

Câncer x Saúde Pública

A pesquisa de Messora tinha data e lugar para focar: São Paulo, 1892 a 1953, que foi o período em que doença se tornou uma questão de saúde pública na emergente capital do final do século 19, ao inaugurar o Serviço Sanitário do estado.

“O câncer no começo é percebido como uma doença fruto de infecções microbianas e fica no Departamento de Infectologia do Serviço Sanitário. É importante entender o caráter infectológico. Isso obriga as instituições de saúde pública a tratar da doença, pois as camadas mais pobres representam um pólo de contágio. Também, com o serviço sanitário, começam os anuários estatístico demográficos que mediam o crescimento da doença”, conta o professor sobre os primeiros passos da doença em terras paulistas.

Até então, entendia-se que o câncer era exclusivo de grandes centros urbanos.  Messora usa o documentário de 1929, São Paulo, Sinfonia da Metrópole para explicar a paulistanidade, ideia que desejava convencer da superioridade da cidade. A capital caminhava à passos largos para se tornar uma civilização, e juntamente com esta ascensão, a possibilidade do câncer acometer seus moradores tornava-se palpável. A ‘medicina bandeirante’, como era conhecida a medicina paulistana, era quem devia ter a responsabilidade de tratar a doença.

Diferentes concepções sobre a doença foram defendidas por médicos nesses 61 anos. Elder destaca a médica, pedagoga e primeira mulher política brasileira, Carlota Pereira de Queirós, que ainda na década de 20 foi responsável por denunciar a desordem que se construía em torno do câncer na área da medicina e por sistematizar os conhecimentos sobre o tumor. “Tratava de tudo sobre o câncer, foi a obra mais completa que já li”, relata.

Na década seguinte, a Associação Paulista de Combate ao Câncer foi uma instituição filantrópica que se responsabilizou na luta contra o câncer e o tornou uma especialidade médica. Com o pano de fundo da Segunda Guerra Mundial, a propaganda anticancerosa para levantar fundos para o Hospital do Câncer era semelhante às propagandas de guerra dos países combatentes no período.

Cartaz profilático do Serviço Nacional do Câncer, década de 1940. Fonte: Acervo Mário Kroeff

“Como o câncer é um problema de saúde pública, ele precisa ser informado para a população. Por ser um contexto de guerra, a doença ganha um vocabulário bélico. A quimioterapia sendo equivalente à ‘guerra química’. Quando o sujeito vai para a radioterapia, ele ‘bombardeia as células’. Estas se proliferando – que é um dos conceitos atuais da doença – é uma ‘invasão’, o câncer precisa ser combatido, ‘aliste-se nessa luta’. O vocabulário de guerra se mantém até hoje. O Serviço Nacional Contra o Câncer surge na época da Segunda Guerra”.

Uma nova história do câncer no estado de São Paulo se inicia com a fundação, em 1953, do Hospital A.C. Camargo conhecido como Hospital do Câncer, sendo o primeiro especializado na doença, e se mantém até hoje como um dos mais conceituados na área.

Reconhecimento

O extenso estudo de Messora, englobando metodologia historiográfica e ampla coleta de literatura e jornais se mostrou efetivo. A Sociedade Brasileira de História da Ciência premiou o historiador como a Melhor Dissertação de 2018, em cerimônia realizada em outubro daquele ano.

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