Células troncos podem recuperar tecido morto por cárie

Terapia regenerativa menos agressiva seria alternativa ao tratamento de canal

As células tronco se encontram em diferentes lugares da boca, e em parceria com os endocanabinóides, podem representar um avanço na endodontia (Westend61/Getty Images)

Uma das maiores tendências da medicina são as terapias regenerativas. Com o uso de células tronco, elas visam a recuperação de órgãos, tecidos ou qualquer outra área do organismo danificada. E por toda a boca, são diversos os lugares em que se encontram as células tronco. Com seu doutorado Papel de endocanabinóides na modulação de células de papila apical humana in vitro, a pesquisadora Claudia Meneses visa estudar uma alternativa menos agressiva ao tradicional tratamento de canal, investindo neste potencial da regeneração celular como opção.

“Fazer” o canal, como se diz em linguagem leiga, nada mais é que remover a polpa do dente, que preenche o canal, e substituí-la por um material artificial. A necessidade desse tratamento surge quando essa polpa, uma espécie de “nervo”, morre. Estudos como o de Claudia caminham para uma mudança, em que a remoção daria lugar a regeneração.

Na boca, uma cárie que se torna mais profunda faz o paciente começar a ter dor “espontânea”, em que essas bactérias alcançam essa polpa, que está no centro do dente. Se o quadro evoluir, esse nervo morre, e o dente necrosa.

Se o projeto de Claudia, que tem previsão de término para abril de 2020, obter resultados positivos, seria incentivado o aparecimento de uma nova polpa do dente natural.

Por se tratar de um processo lento, a coroa do dente ainda seria restaurada, fechada, como é tradicionalmente feito.

A pesquisa tem crianças como principal público alvo, já que seus dentes, quando substituídos pelos permanentes, ainda não tem raiz totalmente formada. Se nesse período de formação – que dura de dois a três anos – a criança tiver alguma cárie, que prejudique o nervo do dente, a raiz fica pela metade e o dente, incompleto. E por isso elas são a prioridade desse estudo, pois a raiz incompleta é sinônimo de um dente frágil, sem resistência.

Então iniciou-se o processo de localização das células tronco. Os arredores da raiz e a polpa são dois deles. É nessa etapa em que se inserem as papilas mencionadas no título da tese. A papila está na ponta da raiz, é uma estrutura responsável por fornecer células que completam sua formação e que resiste por mais tempo às agressões da cárie.

A papila apical se encontra na ponta da raiz, a polpa preenche a parte vermelha, o chamado canal. (./ResearchGate)

Quando a polpa morre, graças a alguma bactéria, se essa estrutura não morrer ainda há chances da raiz continuar sua formação. Então, para que os estudos de Claudia tenham resultados positivos, é fundamental que a papila permaneça viva.

As células dela foram estimuladas de diferentes maneiras, em reproduções do ambiente da boca. Em um cenário com cárie, haverão bactérias e diversos outros elementos, e o objetivo era analisar a resposta das células de papila a essas adversidades.

Os experimentos são feitos com dentes extraídos na própria Faculdade de Odontologia da USP, mediante autorização dos pacientes, e geralmente são do siso, que na maioria dos casos só surge na vida adulta. Claudia retira a papila apical, faz cultura de célula e a estimula, “judiando” dela: “eu vou estimular como se fosse num ambiente oral, na boca do paciente com cárie, então eu vou botar várias concentrações diferentes de bactéria pra ver como ela responde. Por exemplo, descobrir que quando uso tal anti-inflamatório aquele efeito nocivo da bactéria não acontece na célula. Queremos descobrir alguma coisa assim pra gente poder aplicar na clínica e melhorar o prognóstico dos pacientes nesses casos.”

Processo inflamatório

Já a parte dos endocanabinóides foi ideia da orientadora do doutorado, Carla Renata Sipert, que idealizou o projeto inicial. Essas substâncias são produzidas durante uma reação inflamatória. Numa situação em que nossa boca se defenda de bactérias, eles podem assumir diferentes papeis, como ação anti-inflamatória, e aumentar ou diminuir a proliferação de células. O objetivo é descobrir qual a função que eles assumem nas células de papila.

Antes, Claudia estudava se eles existiam nessas células, o que acabou por comprovar: “a gente estimulou essas células com bactérias e aí fizemos um experimento chamado PCR, em que a gente vê a expressão gênica, pra ver se tínhamos ou não a expressão gênica de genes que sinalizam a produção de endocanabinoides, e a gente encontrou nas células da papila isso.”

São diversos os perfis de cárie, e até agora os endocanabinóides se manifestaram nos testados, por mais que não haja garantias de que apareçam em absolutamente todos os casos.

Os experimentos utilizaram diferentes concentrações de substâncias produzidas por bactérias. Seguindo o protocolo científico, eram três amostras por teste.

Agora, os endocanabinóides serão bloqueados com um antagonista, para que através da comparação se identifique o papel deles na papila.

Os endocanabinóides existem em inúmeros nomes e componentes, e são derivados do ácido araquidônico, um tipo de ácido graxo produzido naturalmente pelo nosso corpo e reproduzido em laboratório. Esse ácido gera prostaglandina, substância presente durante uma inflamação.

Claudia destaca os benefícios que resultados positivos da pesquisa poderiam trazer para os pacientes, uma alternativa mais natural em tempos menos invasivos: “No canal, tenho que tirar todo aquele tecido que é a polpa e colocar um material no lugar. Só que se eu pudesse tirar aquele tecido e dar um jeito de colocar um tecido igual, nada melhor do que um tecido do organismo pra preencher o lugar. E se a gente conseguisse fazer com que a célula tronco, que a gente tem ali por perto, entrasse no canal, por baixo, por dentro mesmo do osso da raiz, pra formar um novo tecido, ia ser muito melhor.”

Depois do processo de bloqueio do derivado de ácido graxo, que fará ainda na FO, Claudia pretende seguir com seu projeto no exterior, já que algumas das substâncias que precisa para dar continuidade aos resultados não são permitidas no Brasil: “vou pegar endocanabinoide externo e colocar na célula, e no Brasil a gente não consegue importá-los, por causa de toda aquela lei, que cannabis não entra.”

Sim, se você notou a raiz da palavra cannabis saiba que a semelhança também é vista pelas autoridades brasileiras. A pesquisadora reforça que as substâncias não se conectam em composição, apenas os receptores de ambos são os mesmos.

Ainda são muitas as etapas antes que essa possibilidade possa se tornar algo palpável. Em caso de resultados positivos ao final do trabalho, a pesquisa tem que ser publicada, e depois testada em animais antes de passar para outro patamar. Apesar de parecer distante, Claudia destaca sua fé nas células tronco: “Não é só sobre a papila ou sobre a odontologia, é sobre a era das terapias regenerativas.”

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