Preservação dos bens culturais demanda integração de museus e laboratórios

Ainda incipientes, pesquisas em conservação do patrimônio dependem da iniciativa de grupos individuais

Amostra de eflorescência salina sendo recolhida para análise. Foto: Isabela Sodré/arquivo pessoal

A ciência da preservação é uma área de estudo transdisciplinar que visa retardar a degradação de bens culturais. Os trabalhos de conservação partem de uma parceria entre os museus e grupos de pesquisa em química. Na USP, Isabela Sodré procurou responder como a composição química e os fatores ambientais influenciam no desencadeamento de processos de degradação. A tese, intitulada Aspectos estruturais e sinérgicos na investigação de bens culturais: efeito de nanoestruturação na cor do pigmento α-Fe2O3 e da composição química na formação de eflorescências em duas pinturas, foi defendida no Instituto de Química (IQ).

A degradação acontece de forma natural. Como qualquer material, os bens culturais são suscetíveis à degradação, e toda degradação é um processo químico. A constante exposição à luz e umidade, por exemplo, é suficiente para deteriorar o patrimônio ao longo do tempo. Alguns órgãos governamentais do Brasil procuram evitar esse processo, como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), responsável pela preservação em nível federal. Ainda assim, os projetos são poucos.

A química conta que ainda são poucos os estudos que se dedicam a abordar a ciência da conservação, tendo a maioria dos trabalhos partido de atitudes isoladas. “Internacionalmente, faz parte das recomendações que se faça uma pesquisa química, física, microbiológica, para entender a natureza material dos bens para visar a preservação. No Brasil, ainda depende muito da iniciativa de grupos isolados no laboratório”.

As pinturas

Dessa forma, o grupo de Isabela procurou investigar a natureza química dos objetos de interesse histórico e cultural. O estudo foi centrado na obra Barco com bandeirinhas e pássaros de Alfredo Volpi, em parceria com o Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP; e na pintura mural da Sala do Trono do Palácio Nacional de Mafra em Portugal, que a pesquisadora visitou no doutorado-sanduíche (intercâmbio para pesquisa). “Os estudos antecederam o processo de restauração dessa sala, e foi interessante porque a pintura tinha uma parte totalmente degradada, e fomos lá analisar o material para entender o que estava acontecendo quimicamente”, explica.

Pintura de Alfredo Volpi sendo analisada. Foto: Isabela Sodré/arquivo pessoal

As duas pinturas analisadas apresentaram similaridades: em ambas, os resultados indicaram que houve proliferação de micro-organismos. Além disso, também foram encontradas eflorescências salinas — ou seja, a migração dos sais, que estavam dissolvidos na estrutura, para a superfície da pintura. “A pintura mural estava em uma área de alta umidade, e tal exposição provavelmente desencadeou a migração de sal”. Fungos do gênero Cladosporium e Penicillium, associados à presença de fissuras e destacamentos, foram identificados nesta mesma pintura.

No caso da pintura de Volpi, o processo foi mais complexo. Foi verificado que a razão da eflorescência era inerente à obra, e iria acontecer de qualquer forma. “A base de preparação é feita geralmente com gelatina e carbonato de cálcio (ou algum sal), e depois que o pintor faz essa base de preparação, ele faz a camada pictórica, então ele aplica os pigmentos com a técnica dele. E o que observamos é que essa gelatina, essa proteína, ficou instável e migrou para a superfície”, explica Isabela. Assim, a gelatina levou o material proteico para superfície, que foi usado de alimento pelos micro-organismos que colonizaram a pintura.

Isabela esclarece que a diferença de umidade faz o material migrar, principalmente sais e ácidos graxos. Então, num ambiente com alta temperatura e alta umidade, a migração de material para a superfície é favorecida.

Integração

A pesquisadora acredita que os principais efeitos do estudo se dão em relação ao estímulo que pode fornecer aos laboratórios e museus para que se unam com o objetivo de preservar o patrimônio cultural. Como exemplo dos benefícios atingidos com esta parceria, ela dá o óxido de titânio. “Na química, já se sabe há muito tempo que esse pigmento tem efeito antibactericida. Porém, nos estudos de patrimônio, esse conhecimento não chega. Então sempre temos que olhar além da esfera do nosso trabalho”.

Ela, porém, questiona se os resultados obtidos nas pesquisas de ciência da conservação vão influenciar a escolha dos materiais usados pelos artistas. “A gente visa tanto a preservação de um bem, mas isso é subjetivo. O que significa você preservar a qualquer custo? Você pode colocar ele num ambiente escuro e fechado, mas ninguém vai ter acesso”.

Isabela aponta que a tese conseguiu demonstrar a importância da integração dos museus, da química e dos órgãos públicos que cuidam do patrimônio. “Não basta dizer que está protegendo o patrimônio, é preciso traçar ações. E quando se conhece a natureza, a suscetibilidade de um material para degradar, é possível delinear melhor as estratégias de restauração e conservação”.

 

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*