Retratos ocultos da real maternidade

Vista como “tarefa original” da mulher, a maternidade não é sinônimo de felicidade ou plenitude para muitas. Ilustração: Júlia Vieira

Por Ane Cristina, Anny Oliveira, Beatriz Gatti, Bruna Arimathea, Júlia Vieira e Larissa Santos,

Com o bebê em mãos, ela anuncia um relato. Mais que isso, traz registros. A câmera mostra os gritos, a dor, a evolução dos quatro aos dez centímetros de dilatação, e também a pausa no trabalho de parto, utilizada para uma retocada na maquiagem. Para “sair bem na foto”. Embora as imagens trazidas pela youtuber Karina Milanesi, do canal Dica da Ka, explorem sua própria verdade, elas evidenciam dois fenômenos interligados. De um lado, a ampliação de vozes femininas a respeito da maternidade. Do outro, sua glamourização.

No Brasil, a onda de influenciadoras digitais que adicionam sua condição de mãe à própria marca teve início com Lia Camargo, conhecida como Just Lia. Logo, tutoriais de maquiagem e resenhas de produtos recebidos deram lugar a roupas de bebê e decoração de quarto infantil. As “mamães youtubers”, como se intitulam, trouxeram não apenas um novo tipo de público, como também popularizaram a discussão para uma audiência já estabelecida e pouco acostumada com o tema.

Não só Lia Camargo, como também diversas youtubers narram variados momentos que envolvem desde o pré-parto até aniversários de seus filhos. Foto: Reprodução/Youtube

O show da maternidade se estabelece com facilidade. Mulheres crescem, encontram alguém, se casam e têm filhos. O último ato parece ser o ápice da realização feminina. É quando se encontram como mulher. Porque, no imaginário social, ser mulher e ser mãe são sinônimos, e existe uma obrigação em ter filhos para encontrar sua plenitude. É o que a cientista política Layla Daniele define como “maternidade compulsória”.

Formada pela Universidade de Brasília (UnB) e especialista em políticas públicas de saúde para mulheres, uma das áreas de estudo da pesquisadora Layla Daniele Pedreira de Carvalho são os direitos reprodutivos. O debate acerca do tema nasce a partir da década de 1970 e torna-se mais popular ao longo de 1990, após a Conferência de Viena (Áustria) sobre direitos das populações, em 1993, e da Conferência Mundial da Mulher em Beijing (China), no ano de 1995, em que a autonomia feminina foi amplamente discutida.

A questão central dos direitos reprodutivos é garantir a liberdade de homens e mulheres de decidirem se e quando desejam ter filhos. Para Layla, isso abre a possibilidade de questionar a “necessidade” de que as pessoas, sobretudo as mulheres, só se “realizam” após gerar uma vida. O debate, que já existia desde 1960 dentro de movimentos feministas, ganhou espaço fora do nicho do ativismo. “Os direitos reprodutivos definem que a maternidade e a paternidade são escolhas das pessoas. São direitos, e não deveres”, conta a cientista.

Para que estes direitos sejam garantidos, é preciso que o Estado disponibilize o acesso a métodos contraceptivos e proporcione o direito de escolher prosseguir ou não com a gestação. No Brasil, a oferta é falha quando se trata de dispositivos de contracepção de longo prazo, como o DIU e o adesivo hormonal, e o aborto é restrito a casos específicos. De acordo com uma pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz, mais de 55% das brasileiras que tiveram filhos não programaram a gravidez. “Não há políticas eficientes de planejamento reprodutivo e quando as mulheres engravidam, a maioria de surpresa, abraçam essa maternidade porque é compulsória”.

Layla é parte da estatística que não planejou ser mãe. A partir da própria experiência, ela comenta pequenas situações em que a mulher é cobrada em torno de suas atitudes com a criança: como dar banho do jeito certo, como preparar a alimentação, como colocar para dormir. Ao longo de um dia, uma mãe sofre várias interferências de outras pessoas sobre a maneira como lida com seu filho e tem seu comportamento “moldado” em relação à criação dele.

Essas pequenas atitudes, no dia a dia materno, ultrapassam o contexto do micropoder e influenciam em decisões maiores. Para além do melhor jeito de testar a água do banho, elas têm de escolher direções de educação e trabalho compatíveis com a nova função. Segundo a Fundação Getúlio Vargas, metade das mulheres deixa o emprego após um ano do início da licença maternidade. É este o impacto em suas vidas profissionais.

Mulheres têm seus comportamentos vigiados e regulados em relação à criação dos filhos.
Ilustração: Carolina Horita/M de Mulher

Responsável por esse tipo de consequência, a inexistência da divisão de tarefas entre os cuidadores é a base das cobranças sociais depositadas na maternidade. No geral, entende-se que a mulher é a encarregada integral pelo bem-estar da criança. “Não existe uma rede de cuidadores que passa pelos homens, pais dessas crianças, pelas próprias famílias e pelas redes mais próximas que esse núcleo consegue formar: seja vizinho, seja amigo da família”.  

O papel social representado pela maternidade é paradoxal: ao mesmo tempo em que é privado, por conta do caráter familiar e social, é estruturante, pois são essas crianças, criadas por essas mulheres mães, que irão modelar como a sociedade vai se constituir. Ou seja, as mães são as grandes responsáveis pela organização e pela reprodução social.

Quando uma mulher se nega a cumprir sua tarefa original, dada por alguma instituição, geralmente associada a uma entidade acima de tudo e todos, como Deus, nasce a sensação do absurdo. “Sob o entendimento do sagrado, a mãe é vista como uma mulher amorosa e dedicada. Quando ela decide não dar esse afeto como mãe, é lida como egoísta. É um questionamento do mandato divino”.  

“Antes de ser mãe, nunca tinha pensado na quantidade de escolhas que uma mulher precisa fazer cotidianamente para continuar funcionando na sociedade”, conta. Segundo Layla, uma lógica mais ampla de responsabilidade social se faz necessária: “Nós, sociedade, cuidando das crianças, que são o futuro”.

Mãe e infeliz

Em The Cry (2018), série exibida pelo canal britânico BBC, o início da vida materna de Joanna Lindsay (Jenna Coleman) é retratado bem longe do ideal de felicidade. A jovem, mãe de Noah, vive momentos difíceis durante os primeiros meses de vida do filho e não se vê feliz com toda a nova situação. Com cuidado integral à criança, quase sem ajuda do marido e com poucos momentos de descanso, Joanna demonstra pouco afeto emocional ao que muitas mulheres acreditam ser um momento mágico da maternidade. Sem conseguir conciliar a sua própria vida, Joanna troca seus remédios controlados pelos de Noah, assassinando o próprio filho acidentalmente. Assim, é obrigada a conviver com a culpa e o questionamento sobre seu real sentimento pela condição de ser mãe.

Em outra produção para a TV, a série Big Little Lies (2017), da HBO, acompanha a vida de três mães: Celeste (Nicole Kidman), Jane (Shailene Woodley) e Madeline (Reese Whiterspoon). Além do mistério que carrega a trama principal, a série traz reflexões sobre as diferentes versões de ser mãe. No episódio piloto, Renata, personagem de Laura Dern, se queixa para o marido de como a julgam por ser uma mãe que trabalha enquanto as mulheres de seu convívio são dedicadas apenas à função de progenitora, permitida pelas condições financeiras privilegiadas de suas famílias. Ela ama a filha Amabella, mas distribui grande parte do seu tempo no trabalho e sente a pressão social pela escolha.

Em The Cry, Joanna Lindsay convive com a culpa entre a morte do filho e o desgosto pela maternidade. Foto: Reprodução/BBC

O caso não se limita à ficção. Diversas mães descobrem não amar as tarefas e os percalços da maternidade. A forma como a sociedade impõe a “beleza” de ser mãe é um dos principais responsáveis pelo sentimento negativo dessas mulheres e, por vezes, da falta de atenção. Paula Ceci Villaça, psicóloga formada na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e especializada em parentalidade, aponta a relação dual que toda mãe precisa encarar logo depois do parto.

De acordo com a psicóloga, ainda é uma questão complicada de se tratar justamente pela falta de aceitação e visibilidade do tema. “A maioria das mulheres não admitem isso abertamente. Primeiro é esperado que todas as mulheres desejem isso. Uma vez que são, vêm as cobranças. São tantas exigências e, às vezes, tão contraditórias que deixam as mulheres angustiadas”, ressalta Paula.

Baby blues

O período de puerpério pode representar o começo das dores de ser mãe. Puerpério corresponde à fase que vai desde o parto até o corpo da mulher voltar ao que era antes da gestação. Esse intervalo também marca a queda da alta carga hormonal dos nove meses de gravidez. Olhando especificamente para o funcionamento biológico da mulher, o puerpério é difícil física e psicologicamente. Mas há um detalhe decorrente: agora ela é mãe e tem de lidar com sua nova realidade.

O parto pode ser considerado um nascimento duplo: nasce um filho e uma mãe. Enquanto enfrenta uma revolução interna, ela precisa ainda atender às necessidades do bebê que exige atenção 24 horas por dia, sete dias por semana. “O mais importante é termos em perspectiva que toda mãe tem uma relação ambígua com a maternidade: o bebê pode ser lindo e fofo, mas dá muito trabalho. Há muitas renúncias da vida pré-maternidade a serem feitas e se sentir contrariada com isso é normal”, comenta a psicóloga.

Por isso muitas mães sofrem com o baby blues. O que é isso? Decorrente das mudanças no corpo e no cotidiano dessas mulheres, elas entram em um estado de melancolia e tristeza. Nem sempre bebê e a mãe estarem saudáveis e o dia a dia ser ‘tranquilo’ é suficiente para garantir a felicidade materna. Socialmente, essa mãe parece ter a obrigação de ser feliz, e isso pode causar culpa, o que agrava o período de quarentena.

De acordo com a American Pregnancy Association, cerca de 70% a 80% das mulheres sofrem no período puerpério, porém a maioria não se sente à vontade para falar disso abertamente. Mas o baby blues tem duração definida: dos primeiros dias pós parto até por volta de um mês. E passa. Biologicamente, o período puerpério pode terminar, porém nem sempre isso simboliza felicidade automática para as mães. Há mulheres que descobrem não gostar de ser mães e outras que sofrem de depressão pós-parto.

Amo meu filho, odeio ser mãe

Nem todas as reações se localizam no extremo de amar ou odiar todas as partes da maternidade. Em diversos casos, mães são afetuosas com seus filhos, mas não conseguem suportar nenhuma das atividades que envolvam seu cuidado acerca da função. Paula Villaça destaca que recebe em seu consultório muitas pacientes que convivem com esse conflito e que são alvejadas pelo meio que frequentam.

É exigido da mulher que, a partir do momento em que se torna mãe, esta seja a única experiência da sua vida, o que a psicóloga assinala como um pensamento errôneo. “Não se pode mencionar que não gosta de acordar muitas vezes de madrugada ou de trocar fraldas, ou mesmo de não poder sair com os amigos à noite. Espera-se que, imediatamente, depois de uma confissão dessas venha a frase: ‘Ah, mas o sorriso dele me faz esquecer isso tudo’”.

Em Big Little Lies, Renata é mãe e uma empresária de sucesso, dividindo a função de mãe com uma babá e sofre pressão da rede de mulheres em seu entorno. Foto: Divulgação/HBO

As condições sociais também são um elemento importante. Segundo Paula, mães em melhores situações financeiras podem abdicar dos cuidados com a criança e repassar a tarefa para babás, por exemplo. Quando são de classe média e têm a possibilidade de atribuir sua distância do bebê ao trabalho ou ao cuidado “especializado” da babá ou da avó, são mais perdoadas. Quando são de classes mais baixas, são consideradas “más mães” e, portanto, “más pessoas”, porque em nossa sociedade ainda há muito essa associação da mulher com a mãe”.

Para Maria Fernanda Ayres Nogueira, psicóloga formada na USP também especializada em parentalidade, as redes sociais e a internet se caracterizam como um grande canal, tanto para reunir histórias comuns quanto para dar visibilidade a esse pensamento. “Em alguns grupos protegidos [na internet] essas mulheres podem ser acolhidas, mas em geral a reação das pessoas não é boa. Por isso, acredito que a maioria das mães insatisfeitas com a maternidade não externalize esse sentimento em público”.

A youtuber Helen Ramos, do canal Hel Mother tenta desmistificar em cada vídeo o agridoce da maternidade. A paulistana é mãe de Caetano, que hoje tem quatro anos.  Desde 2016, ela publica vídeos desconstruindo semanalmente algum tabu sobre a maternidade, em uma conversa leve e consciente.

Sua produção mais famosa Por que desromantizar a maternidade reúne uma série de frases reproduzidas socialmente. “Não sabia que quando você vira mãe, talvez você nunca mais consiga voltar para o mercado de trabalho. (…) Na hora que decidi ser mãe, sabia que era solteira, mas não que, por uma parte, seria mãe solo. Não sabia que ao deixar meu filho com minha família, escutaria coisas como: ‘teve filho para dar para os avós criarem’ ou ‘teve filho para os outros criarem’. Porque às vezes, deixar seu filho com a família para trabalhar é isso. ‘Dar para os outros criarem’. Às vezes você é julgada pela própria família”.

“No momento que decidi ser mãe, não sabia o que era ser mãe (…) Escolhi ser uma mãe que não existe”. Foto: Reprodução/Youtube

Essa seleção de comentários e muitos outros são comumente ouvidos por mulheres. “Já há controle sobre a mulher na gestação. Toda grávida ouve opiniões de desconhecidos sobre ela ou o bebê antes mesmo dele nascer”, conta a psicóloga Paula Villaça. “Se, por um lado, a mulher pode viver essa maternidade de modo opressivo, com sucesso inalcançável e sofrer por isso, por outro, pode ser tão exigente que não aceitaria nada menos que a perfeição (contraditória) que impõem às mães”.

O entorno da mulher, que inclui desde a família, amigos próximos, colegas de trabalho e até conhecidos (e às vezes até estranhos), exige que, ao se tornar mãe, ela goste da função da maternidade e a desempenhe de forma perfeita. Os constantes conselhos tentam definir como essa mãe deve agir, tanto no papel de mãe educando quanto no papel de mulher.

Essa cobrança impõe que ela não cometa erros e se encaixe nos padrões pré-estabelecidos. Além de exercer pressão sobre sua conduta, decreta que ela deve amar o seu novo papel. O artigo da internet publicado pelo Buzzfeed em novembro de 2018, reuniu relatos da Buzzfeed Community sobre mom-shaming sofrido. Esse “assédio às mães” deseja constranger e julga mulheres que não se portam de acordo com o estereótipo materno, mas, por vezes, não dando nem espaço deles mostrarem suas escolhas.

Alguns comentários dizem: “Quando estava grávida, tentaram me constranger por não ter enjoo matinal” e “Estava trocando a fralda da minha filha no porta-malas do meu carro quando um estranho disse que eu estava ensinando-a a se expor em público”. Essas falas comuns pioram quando uma mulher expõe não gostar de desempenhar a maternidade.

Apesar do senso comum, canais como o de Helen tentam trazer um discurso diferente e grupos (secretos) podem ser uma rede de apoio, como um encontro de mães que encontram apoio uma nas outras. A clínica de Paula Villaça oferece terapia especializada para essas mulheres.  “O primeiro trabalho pode ser o de a mulher poder falar sobre isso, em um local seguro, onde sabe que não vai ser julgada, depois poder admitir seus desejos, se gosta, se não gosta, do que não gosta e do que gosta. Assumir como gosta de ser mãe, se gosta de ser mãe e assim ir tomando suas saídas muito pessoais, sem estar tão atrelada e paralisada no discurso do outro, do que os outros esperam dela, ou do que ela própria acha que os outros esperam dela”.

Não amo meu filho, nem a maternidade

A questão levantada vai além do fato de não gostar da rotina de trocar fraldas ou amamentar. Cerca de 25% mulheres são acometidas com a Depressão Pós Parto (DPP). A doença é diferente do baby blues, pois, por ser um transtorno psiquiátrico, exige acompanhamento médico constante e ajuda de remédios.

A DPP pode atingir qualquer mulher após a gravidez, mas incide mais sobre as que já tiveram algum transtorno mental previamente, como a própria depressão. Vulnerabilidade econômica, violência doméstica e gravidez indesejada são fatores que também podem ser agravantes da sensação de odiar tudo e todos enquanto mãe, inclusive o próprio filho.

Porém, a DPP não é o único motivo para o desgosto na maternidade. Nogueira afirma que a romantização deste momento como o “ápice da feminilidade” pode ser decisivo para a desconstrução da mãe perfeita. Quando esse momento chega, as reações podem, então, ser negativas. “As mulheres idealizam uma situação e, ao se depararem com a realidade, percebem que não era isso que elas estavam buscando. Algumas podem não desenvolver um bom vínculo com a criança ou ser até agressivas ou hostis”.

Em uma tentativa de amenizar a falta do sentimento materno, algumas mães recorrem literalmente à aparência para diminuir os julgamentos. Segundo Nogueira, é comum mulheres nessa situação se tornarem super protetoras quando em público, escondendo como reagiriam longe das pessoas. “Elas podem super protegê-los ou demonstrar incansavelmente − para os filhos e para os outros − que adoram ser mães. Essa pode ser uma maneira para se defender dos sentimentos que ela julga inadequados”.

“Você é muito nova, vai mudar de ideia”

Aos 19 anos, Vanessa Lima iniciou sua vida sexual. Para as pessoas que conviviam com ela, a iniciação pareceu tardia. A espera foi uma escolha pessoal de Vanessa, mas ela acredita que a demora foi causada pelo seu pavor de gravidez. Hoje em dia, ela alia dois métodos contraceptivos diferentes, porém ainda não se sente segura. Decidida desde a adolescência a não ter filhos, Vanessa ainda se vê presa a regras sociais e ao machismo que rodeiam a laqueadura no Brasil. “O estado brasileiro faz de tudo para dificultar a autonomia da mulher”, desabafa a jovem.

No Brasil, a laqueadura só é permitida para mulheres que já tenham dois filhos ou que tenham mais de 25 anos. “Infelizmente ainda há esse empecilho da idade e da permissão do cônjuge, e grande recusa dos médicos em realizar cirurgia em mulheres sem filhos”. Mesmo após completar a idade permitida, muitas mulheres ainda têm dificuldade em passar pelo método de esterilização.

Aquelas que não desejam ter filhos não recebem respaldo da sociedade para sua decisão: “Quando falo que tenho desejo em fazer laqueadura, as pessoas sempre levam em tom de brincadeira. Depois vem o ‘você é muito nova, vai mudar de ideia’”. É como se a decisão feminina não fosse legítima. Nem para a sociedade, nem para o governo, pontua a pernambucana: “Se a responsabilidade de ter um filho seria só minha, então tenho o direito de optar por não gerá-lo. A responsabilidade é só minha. E gostaria que essa vontade fosse respeitada. Inclusive pelo Estado”.

Vanessa é estagiária de análise do comportamento aplicada com pessoas com Transtorno de Espectro Autista e trabalha com crianças. Apesar de cuidar delas, a analista relata que muitos ainda a veem como uma “bruxa” que odeia crianças. “As pessoas confundem a falta de vontade de ser mãe com não gostar de crianças. Falo sempre: amo crianças, me interesso pelo desenvolvimento delas. Mas isso não significa que estou disposta a ter uma”.

A opção pela carreira profissional em detrimento da maternidade também vai contra os princípios da sociedade tradicional. Ilustração: Silvia Casanova/OfficinaB5

“E aí, quando vai ter filho?”

O machismo enraizado na sociedade se reflete nas perguntas que elas recebem quando falam da vontade de não ser mãe. “Quando digo que não quero ter filhos, sempre ouço ‘mas você não vai dar um filho a Carlos, não?’ ou ‘o que Carlos acha sobre isso?’, como se essa decisão sobre meu corpo fosse papel do meu companheiro”, relata Marta Lopes, de 20 anos.

Há essa ideia que permeia a consciência coletiva de que a mulher só será completa quando mãe. Marta fala sobre como isso criou um ciclo para a vida da mulher: nascer, crescer, casar, ter filhos e dedicar a vida a eles. Desde pequenas as mulheres recebem referências à maternidade, principalmente por meio das brincadeiras incentivadas ou brinquedos recebidos. “Quando fiz 18 anos, passei a sentir o peso de todos os padrões de ser mulher”. Um desses padrões é o de ser mãe: “Dizer que a mulher só é realizada quando se torna mãe é ignorar o fato de que nós, mulheres, temos sonhos fora desse ciclo, é diminuir a capacidade de poder ser algo além disso”.

Seguindo o que Marta chamou de “ciclo de vida da mulher”, o próximo passo depois do casamento é ter filhos. A fotógrafa Aline Victorin Cardoso, de 23 anos, casou pensando em ter filhos. O pensamento era automático para o casal, como se eles estivessem seguindo a ordem natural das coisas. “No início, pensávamos em ter filhos porque não tínhamos parado para refletir sobre todo o processo, da descoberta da gravidez até as noites sem dormir cuidando de uma criança”. Após o primeiro ano de casamento, Aline e seu marido tomaram a decisão de que uma criança não se encaixaria na vida deles.

“Hoje sinto a pressão. Após três anos de casada já começam as cobranças. E quando falo da nossa decisão vem aquela enxurrada de comentários dizendo que nossa mente vai mudar, que não é bem assim”, conta Aline. Todos ao redor do casal planejam ter filhos e a escolha deles é vista como algo que causará arrependimento, como uma coisa infundada e mal pensada. “Não aconteceu um fato, fomos percebendo algumas situações chatas que aconteciam”, compartilha a fotógrafa. E completa: “A maioria envolvia crianças, os pais sempre cansados, sempre reclamando e nunca podendo estar com amigos por estarem sobrecarregados com a maternidade ou paternidade”.

“É o sonho dele. Mas não é o meu”

Assim como Aline, Daiane Carolina também é casada há cerca de três anos. E desde pequena nunca teve a vontade de ser mãe. A estagiária administrativa conta que, no entanto, quando ficou noiva, até ponderou sobre a possibilidade, porque ser pai é o maior sonho de seu companheiro: “Pensei que talvez aquele só não fosse o momento, que uma hora ele chegaria… Mas não chegou”.

Por ter consciência do desejo da esposa, seu marido sempre respeitou sua vontade, mas às vezes ainda tenta convencê-la. “Não sei como será no futuro. Já tivemos uma conversa séria e eu disse que mesmo o amando não queria interromper seus sonhos”. Daiane acredita que na cabeça do esposo trata-se apenas de uma fase. Na mesma ocasião, ela completou que se isso fosse realmente muito importante para ele, eles deveriam se separar, “para que ele possa realizar seu sonho. Porque, infelizmente, comigo não vai dar”.

Valdineci Pereira, 37 anos, passou pela mesma situação. O marido tinha o desejo de ter um filho com ela, mesmo que ele já fosse pai, mas o casal não compartilhava do mesmo sonho. Valdineci, porém, cedeu à pressão do esposo e tentou engravidar. Essa situação agravou seu quadro de ansiedade e a levou à depressão. O casal não conseguiu ter filhos e acabou se divorciando. Ainda que a vendedora já tivesse enteados, a pressão não cessava: “Diziam que eu tinha que construir minha própria família”.

“A cobrança na Igreja é maior ainda”

A religião também é um aspecto que exerce intensa pressão em cima das mulheres. Como instituição forte, o ambiente da Igreja ainda contribui para a naturalização do processo de gravidez após o casamento. Na família de Vanessa, sua decisão não é aceita por sua mãe: “Ela falou que eu não deveria nem pensar em laqueadura, porque Deus poderia me “castigar” me deixando estéril”. A analista, no entanto, afirma lidar com isso de maneira tranquila, muito pelo motivo de não ser religiosa ou ter sequer uma religião.

No caso de Aline, essa questão é um pouco diferente. Ela e o marido são líderes dentro da igreja que frequentam e encaram muitos julgamentos. “A cobrança na igreja é maior do que dentro de casa. Dizem várias coisas sobre família e Bíblia”, conta. Quando questionada sobre métodos contraceptivos e a argumentação religiosa, a fotógrafa pontua tranquilamente: “Se fosse para só termos filhos e filhos, Deus não teria dado o livre-arbítrio ao homem. São decisões tomadas por cada um”. E finaliza: “Para os outros, minha escolha pode ser loucura, e sempre vou me sentir incompleta. Mas, no meu ponto de vista, ela me traz consequências excelentes”. Ela acredita que cada um tem sua interpretação da Bíblia, mas que não há uma conduta a ser seguida sem que se analise o contexto histórico da época. E, hoje, os tempos são outros.

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*