Literatura periférica: entre o sarau, a sala de aula e o vestibular

Ilustração: Giovanna Jarandilha/ Imagens: Vexels e Juxtapoz

Por Beatriz Gomes, Camila Mazzotto, Giovanna Jarandilha, Larissa Vitória e Luciana Cardoso,

A luta para não se transformar em ‘um corpo a mais’ no meio do ‘cotidiano violento’ e a emancipação de trajetórias pessoais: as vozes da periferia de São Paulo chegaram à lista de leituras obrigatórias do vestibular 2020 da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), por meio da inclusão do disco Sobrevivendo no Inferno, do grupo brasileiro de rap Racionais Mc’s. A instituição adicionou a obra na categoria “Poesia”, ao lado de “A teus pés”, da escritora Ana Cristina Cesar, e de sonetos de Luís de Camões.

O racismo, a violência policial, a falta de oportunidades e a luta por direitos sociais são algumas das questões levantadas pelo grupo, formado por Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay, no disco, de 1997. Quando souberam da inclusão, comemoraram, no Instagram: “É a Periferia ocupando a Academia”.

“É a primeira vez que um disco entra na lista de obras literárias. Não devemos estranhar. Afinal, as letras trazem uma visão da periferia e conjunto de inferências que faz parte da produção textual”, declarou o professor José Alves de Freitas Neto, coordenador executivo do Vestibular da Unicamp, ao portal G1 Notícias.

Professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e da Faculdade Cásper Líbero, Marcos Antônio Zibordi ressalta que a importância da inserção da obra no vestibular é trazer à tona um movimento da cultura brasileira não muito debatido, mas que sempre existiu. Ele critica o questionamento, levantado por algumas pessoas após a decisão da Unicamp, em relação à considerar o rap enquanto poesia ou não. “Vejo a inclusão dessa obra de uma forma muito positiva. Os vestibulares estão muito ligados à literatura do século 19 e precisam se atualizar”, considera.

Em 2016, a discussão em torno da validade de letras de música como literatura se amplificou a partir da entrega do prêmio Nobel de Literatura ao cantor norte-americano Bob Dylan. No anúncio da premiação, Sara Danius, secretária-permanente da Academia Sueca, explicou que, assim como Homero e Safo escreveram, há milhares de anos, textos poéticos “para serem escutados e interpretados”, o mesmo aconteceria, hoje, com Dylan.

Márcio Vidal Marinho, professor das redes municipal e estadual de São Paulo e consultor do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP alerta, porém, que o disco dos Racionais não deve ser pensado sem considerar o movimento musical e cultural do qual faz parte, o hip-hop. “Mas as pessoas que vão conhecer a obra por conta da prova da Unicamp têm aparatos muito bons para chegar à dimensão multidisciplinar dela”, completa.

Sobretudo em razão do vestibular, o disco Sobrevivendo no Inferno se transformou, também, em livro, organizado pela Companhia das Letras. Na obra, as letras das canções foram editadas em formato de poemas e a análise apresenta contribuições da tese de Acauam Oliveira, mestre em Teoria Literária e doutor em Literatura Brasileira, que estudou o efeito dos Racionais no “sistema cancional brasileiro”.

Obra e inclusão no vestibular: significados

Para o poeta de literatura periférica Sérgio Vaz, o disco Sobrevivendo no Inferno tem uma função social de grande relevância à periferia, uma vez que fez com que muitos jovens não entrassem na ‘faculdade do crime’. “O Racionais abriu os caminhos para todos nós da periferia, e fico muito feliz com esse ‘chegar’ deles na Academia, porque é um grupo nosso, parece que eles são a nossa família”.

A inserção do disco em uma lista de leituras obrigatórias do vestibular, segundo Elaine Martins, professora de Língua Portuguesa da rede municipal de São Paulo, foi tardia. Ela aponta que já existem universidades que abordam, há anos, as letras das músicas dos Racionais em seus cursos, como a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “A Academia está parada no tempo em muitos sentidos e a briga de legitimar alguns discursos, não só Racionais, vigora há tempos nesse espaço”, considera.

Enquanto fazia uma pós-graduação em educação de jovens e adultos (EJA), Elaine conta que um dos professores que ministravam as aulas “com graduação, mestrado e doutorado seguidos pela USP, que nunca tinha saído de dentro da Universidade”  desconhecia a realidade característica de muitas escolas públicas de São Paulo e, do mesmo jeito que ele se espantava ao ouvir as experiências dela e de outros professores em sala de aula, os estudantes que vão escutar os Racionais pela primeira vez por conta do vestibular terão a chance de ampliar suas visões de mundo. “É ir muito além dos muros da escola!”, completa.

“No meu TCC, que foi sobre as possibilidades de abordagem dos Racionais em sala de aula, eu já dizia, em 2007, que deveria ser obrigatório estudar as músicas do grupo nas escolas”, conta o professor Marinho. Para ele, a inclusão da obra no vestibular da Unicamp também será, na prática, mais impactante para quem não é da periferia, principalmente para os estudantes de classe média alta. “Penso que vai ser muito importante para esses estudantes, porque ouvir Racionais é escutar a literatura periférica expandida”.

Uma das questões mais relevantes da inclusão, considera Marinho, é a inserção de uma voz que, até então, não existia nos vestibulares: “A voz do povão, a narrativa das periferias a partir de pessoas que falam diretamente dela”.

O professor recorda a inclusão de “Quarto de Despejo: Diário de Uma Favelada (1960)”, da escritora Carolina Maria de Jesus, nos vestibulares da Unicamp e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em 2017, mas destaca que as obras tratam de contextos e épocas diferentes, separadas por um espaço temporal de quase 40 anos. “Tem autores representativos da literatura de língua portuguesa nas listas dos vestibulares também, como o Pepetela, com Mayombe (1980) [presente na lista da Fundação Universitária para o Vestibular (Fuvest), porta de entrada à Universidade de São Paulo, desde 2017], que carrega o contexto da guerra de libertação da Angola. No caso de Sobrevivendo no Inferno, também há um contexto de guerra, mas uma guerra não declarada de sobrevivência da periferia”, considera.

O professor Zibordi também ressalta a importância da inserção da obra não apenas por se tratar dos Racionais MC’s, mas por configurar um disco e, portanto, quebrar um padrão dos vestibulares representado pelo livro como único repertório cultural do aluno. “A cultura livresca é importante, mas ela não é suficiente, pois não é só ela que constrói o repertório cultural”, opina.

A Cooperifa: hip hop e poesia

Na periferia de São Paulo, o hip hop e a poesia compartilham espaços de atuação nos eventos culturais há anos. Em 2001, Sérgio Vaz e Marco Pezão criaram o Sarau da Cooperifa (Cooperação Cultural da Periferia), na zona sul paulista, considerado pioneiro entre os movimentos de poesia que hoje ocupam as periferias.

“No sarau, a poesia desce do pedestal e beija os pés da comunidade, porque a literatura chega até nós através da gentileza: eu leio para você e você me ouve, você lê para mim e eu te ouço”, conta Vaz. A literatura periférica, para o poeta, coloca a poesia “na boca da molecada”, quebrando as noções da arte como uma “coisa clássica, pesada, cheia de verniz”.

Vaz revela que a Cooperifa nasceu de um novo jeito de olhar para o bar, uma ressignificação do estabelecimento: “A gente não sabia bem o que queria, pensamos ‘olha o bar ali!’ e o próprio movimento fez a gente se movimentar. O bar é um lugar onde as pessoas se encontram depois de adorar um ‘deus’ chamado trabalho, se unem para falar do asfalto, da segurança, para tomar cerveja, reunir o time de futebol… ali já era o nosso centro cultural, a gente que ainda não sabia”.

O poeta revela que, quando era mais novo, achava que só havia cultura ‘do outro lado da ponte’ e acredita que a importância desses movimentos de sarau também está em fazer com que os moradores da periferia se reconheçam como parte de um lugar legítimo, a partir da construção de uma nova relação com a arte e o espaço. “Na periferia, já esquecemos que também somos gente, que somos seres humanos, capazes de gostar de música clássica, de soul, de jazz, de literatura… Acho que o Sarau diz ‘eu quero falar’ e os jovens dizem ‘ah! isso é poesia? então eu gosto de poesia!’, porque nós dessacralizamos o sagrado”, contextualiza.

O professor Marinho, que nasceu e cresceu na periferia do Jardim Ângela, zona sul de São Paulo, conta que descobriu a Cooperifa em 2004 e, participando do movimento, reconheceu sua identidade de poeta. “Vi que não estava sozinho no mundo, que não era a única pessoa que queria escrever, que tinha poemas guardados”.

Em 2015, ele concluiu seu mestrado em Estudos Comparados de Literatura de Língua Portuguesa pela USP, no qual tratou das contribuições da produção literária e do sarau da Cooperifa para a literatura brasileira. Marinho explica que o lugar de fala do enunciador de uma obra é o ponto-chave para o entendimento da literatura periférica. Os poemas O bicho, de Manuel Bandeira, e Gente Miúda, de Sérgio Vaz, para ele, são bons exemplos que mostram as diferentes relações entre o enunciador e o cenário observado, considerando que esse último é o mesmo nas duas composições.

“O Bandeira animaliza o homem, tanto que ele até o confunde com um bicho [Vi ontem um bicho/Na imundície do pátio/Catando comida entre os detritos (…)/O bicho não era um cão,/Não era um gato/Não era um rato./O bicho, meu Deus, era um homem], enquanto Vaz o humaniza, porque se identifica com ele [Daniel (…) acordava na sarjeta/ Na calçada ou no lixo./Os dentes,/Em intervalos,/Mastigavam as migalhas do mundo(…)/Era soldado/Das tropas dos famintos]. O Bandeira, como não convivia com aquela realidade, se choca. Agora, para quem está na periferia, isso não é um choque”, explica.

Pintura em parede do Sesc Campo Limpo, que sediou parte da programação da 11º Mostra Cultural da Cooperifa, realizada entre os dias 20 e 28 de outubro. Foto: Beatriz Gomes

Para Vaz, a periferia de São Paulo nunca leu tanta poesia quanto hoje e muitos escritores formaram, nesses espaços, um público leitor que, muitas vezes, era visto como inconcebível por eles. “Talvez até por arrogância, por achar que o público da periferia não podia ler, e hoje se lê muito, o país lê pouco, mas a periferia de São Paulo tem lido muito!”.

Na sala de aula

A condição das mulheres no Brasil, a violência presente nas comunidades, o racismo, a falta de oportunidades: muitas são as questões que aparecem nas letras de rap e hip hop e que podem levar à crítica de realidades sociais do país. Segundo a professora Elaine, essas composições abrem espaço para a reflexão de cenários presentes no cotidiano e na vida dos jovens.

Ela conta que, ao pedir para os alunos trazerem músicas de rap e hip hop em suas aulas, eles ficam surpresos. “Eles falam ‘Como assim? Você tá pedindo pra gente trazer música para as aulas? Professor não pede pra aluno trazer música’. Eu digo: ‘Eu tô pedindo’. E eles perguntam: ‘Mas pode ser o rap que eu quiser?’. Eu digo: ‘É, o rap que você quiser’”.

Impressionados com a dedicação dos alunos na disciplina, outros professores da escola onde Elaine leciona, questionam os métodos utilizados por ela durante as aulas. A professora explica que a poesia incentiva os alunos a se expressarem, o que não ocorre com outras disciplinas, segundo o depoimento deles. Nessas atividades, ela abre espaço para os jovens aprenderem e perceberem que o conteúdo trabalhado tem importância e pode fazer a diferença em suas trajetórias.

Elaine (à direita) e Márcio (à esquerda) durante palestra sobre literatura periférica na 11º Mostra Cultural da Cooperifa, no CEU Campo Limpo. Foto: Beatriz Gomes

Marinho destaca que o rap faz parte do cotidiano das periferias, sendo um dos primeiros tipos de música que os jovens escutam. Ele explica que o gênero musical pode ser utilizado de diversas formas na sala de aula, como na promoção de debates sobre educação, política e cidadania, fomentando o pensamento crítico dos estudantes. “Aliás, é um dos poucos gêneros musicais de hoje em que o pensamento crítico não sai da pauta. Todos os movimentos têm os seus altos e baixos, mas o rap se mantém político o tempo todo”, completa.

O professor destaca, ainda, a necessidade e a importância das escolas abrirem espaço para a leitura e discussão da literatura de autores brasileiros contemporâneos. “Parece que a literatura parou no tempo. Até pouco tempo atrás o poeta mais vendido no Brasil ainda era o Carlos Drummond de Andrade, porque na televisão não se fala de outros poetas, e, atualmente, nem mais do Drummond, quanto mais de outros”.

Autor da tese “Hip hop paulistano, narrativa de narrativas culturais” (2015), o professor Zibordi ressalta que o papel da música na periferia é, sobretudo, construir narrativas reivindicadoras e positivadoras à respeito da periferia, levantando a autoestima e trazendo à tona questões críticas, relacionando-se, assim, com o orgulho negro do periférico e as dificuldades por ele enfrentadas. “O hip hop trouxe para o primeiro plano uma pauta que sempre existiu nas periferias”.

Além da sala de aula

Elaine e Marinho contam que já testemunharam inúmeros casos em que o rap e a poesia possibilitaram mudanças na vida de seus alunos. A professora conta a história de um ex-aluno que fazia graduação em administração, mas resolveu mudar de curso devido ao seu interesse em língua portuguesa, despertado nas aulas de Elaine. “Um dia estava lá no sarau da Cooperifa e um jovem me disse: ‘Oi, professora, tudo bem? Tô aqui com meus alunos’. Eu falei, surpresa: ‘Com quem?’. E ele me contou que tinha desistido do curso de administração para se tornar professor de português, disse que lembrava das nossas aulas de poesia”.

Marinho explica que os saraus estão cheios de pessoas que haviam abandonado a escola e, participando desses encontros, decidiram voltar a estudar. O sarau faz com que as pessoas percebam a importância de saber se expressar, levando-as a reconhecer que a falta de escolaridade afeta outros âmbitos da vida. “Voltar à escola permite que as pessoas se emancipem de várias formas”, considera. Ele conta que a sua mãe, depois de passar quase 50 anos sem entrar numa escola, a não ser para fazer a matrícula dos filhos ou ir à reunião de pais, também voltou a estudar e, inclusive, na mesma escola em que ele dava aulas, fato que o emociona.

Os estudantes

Não só os professores e a comunidade acadêmica ficaram extasiados com a inclusão da obra dos Racionais na lista de leitura obrigatória da Unicamp. Os alunos, que prestam vestibular ano que vem para ingressar nas universidades em 2020, também se surpreenderam com a escolha.

Angela Delmondes, aluna do cursinho popular Pimentas, em Guarulhos, na Grande São Paulo, comenta que ficou muito feliz com a inserção do álbum. “Estar numa universidade, para a gente que é da periferia, já é uma grande conquista”, conta.

Para ela, o fator mais significativo da inserção é o contato que as pessoas da elite terão com as obras periféricas. “É importante porque os alunos mais privilegiados começam a olhar para uma outra realidade, com uma outra perspectiva”.

Assim como Angela, Marcus Vinícius de Moraes — estudante do Cursinho Popular Transforma, voltado para alunos transgêneros, travestis e não binários da cidade de São Paulo —, também enxerga como inclusiva a presença do álbum no vestibular.

O aluno de 19 anos contrapõe o vestibular da Unicamp a outros mais tradicionais, como o da Fuvest, que seleciona alunos para a Universidade de São Paulo (USP). “Não prestei Unicamp, mas comparo o vestibular deles com o da Fuvest, por exemplo, que tem livros muito acadêmicos e afastados da nossa realidade. Além disso, a Unicamp também é diferente por não focar só na literatura e trazer outros elementos da cultura que não são de uma minoria e, sim, da grande massa brasileira”.

Para Angela, essa realidade, que constitui a maior parte da população do país, não é objeto de ‘preocupação’ para os alunos de elite. “O livro da Carolina Maria de Jesus, Quarto de Despejo, retrata a questão da fome e assim, traz realidades que o pessoal um pouco mais privilegiado não conhece”.

Ela menciona que já conhecia o álbum do Racionais antes de ser obrigatório no vestibular. “Desde pequena, ouvia muito o que eles tocavam”, conta. Angela completa dizendo que busca se manter em contato com a cultura da periferia. “Aqui onde moro tem aparecido uma galera que também está produzindo música e eu sempre procuro ouvir”.

Quando questionada se já teve alguma obra periférica retratada dentro de sala de aula, a estudante explica que, durante o ensino médio, não houve essa experiência. “Nunca tive um professor que dissesse que a gente ia trabalhar a obra da Carolina. Só vim a ter contato mesmo depois que entrei no cursinho comunitário”.

Marcus, contudo, contou que é próximo da literatura desde criança, e que deseja cursar Letras na faculdade. O morador do Jardim Boa Vista — bairro localizado no limite dos municípios de São Paulo e Osasco —, explica que mesmo vindo de uma família de classe baixa, seu contato com produções periféricas é recente. “Começamos sempre pelos clássicos, mas, há cerca de três anos, pude conhecer melhor a literatura produzida aqui em São Paulo e outros elementos da cultural marginal”.

Para o professor Zibordi, ainda, não há como pensar na inclusão da obra do Racionais pelo vestibular da Unicamp sem pensar na permanência estudantil dos alunos negros, periféricos e oriundos de escolas públicas que estão e ingressarão nas universidades públicas nos próximos anos. No caso da Fuvest, ele aponta que, em comparação com o vestibular da Unicamp, a instituição apresenta uma banca conservadora, mas soluções e alternativas vinculadas ao ingresso desses estudantes começaram, finalmente, a entrar nas pautas de discussão da instituição. Até 2021, as vagas separadas para alunos de escolas públicas na USP vão subir para 50%. “Em breve, metade dos alunos da USP virão das escolas públicas e esse é o ponto que melhor precisa ser trabalhado”.

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