Leitura entre jovens vai além dos cânones literários

Apesar dos adolescentes lerem muito, seus conhecimentos literários não são considerados relevantes em sala de aula

Segundo Patrícia Amparo, “temos que pensar que a escola é um espaço de democratização de conhecimentos”. Foto: Simone Marinho/ Agência O Globo

A internet é um dos principais meios para o acesso à leitura e informação na atualidade. Porém, esses conhecimentos, que divergem dos cânones literários — autores que são considerados referências num determinado período, não são levados em consideração nas escolas. Sob esse contexto, Patricia Amparo, pesquisadora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP), investiga como ocorrem às práticas literárias dentro de duas escolas estaduais do ensino médio.

Denominada Práticas de leitura na escola hoje: representações em conflito, a pesquisa de doutorado se desenvolveu a partir do questionamento sobre como a escola forma leitores. Patrícia assistiu aulas de Língua Portuguesa em duas escolas estaduais — uma localizada no centro da cidade e outra na região periférica — durante dois meses. A imersão tinha objetivo de compreender como ocorria a relação entre leitura, os professores e os jovens, observando os processos de construção de leitores dentro da escola.

Outro interesse da pesquisadora era observar o que acontece no caminho da escolarização para levar os alunos a se entenderem como “não-leitores”. A decisão por acompanhar aulas possibilitou a percepção do cotidiano escolar como algo diverso e multifacetado. “A tese está organizada de modo a mostrar que cada posição das pessoas em sala de aula guarda milhares de desafios e dependem dos outros”, explica Patrícia.

Um dos discursos frequentes é que a escola tem o objetivo de ensinar a “boa literatura” aos alunos. No entanto, eles não querem aprender e não veem importância nesse tipo de conhecimento. De acordo com a pesquisadora, na sociedade existem diversos tipos de representações literárias e elas estão em circulação, mas há grupos sociais que criam novas interpretações que, na verdade, demonstram a visão que eles têm do mundo.

A pesquisadora diz que não encontrou a ausência ou falta da literatura na vida dos jovens, mas buscou as diferentes representações de leituras que eles poderiam ter. Nessa circunstância, ela observa que existem diversos tipos de representações: aquelas que estão no currículo oficial de ensino, às vivências literárias das professoras e os conflitos que estas vivem entre às leituras que ocorreram na história de vida delas e a leitura oficial que elas aprenderam e devem aplicar à sala de aula. Por fim, há a interpretação de leitura dos próprios estudantes que são construídas a partir da lógica dos grupos sociais que eles estão inseridos.

Múltiplas representações

As representações dos alunos também variam porque, segundo a pesquisadora, a escola pública de hoje é um espaço totalmente heterogêneo e diversificado: “temos diferentes grupos sociais dentro desse local”. A problemática da formação do leitor no ensino médio ocorre porque o cotidiano escolar é fragmentado; há diferentes representações de leitura que estão concorrendo entre si para que algumas delas se sobressaiam.

Entre os conflitos no cotidiano estão os professores lecionarem apenas o conteúdo presente no currículo oficial e acreditarem que os alunos são desinteressados. Porém, a pesquisadora observou que os educandos realizam muitas leituras em diferentes meios como livros, jornais, revistas, best-sellers, blogs, redes sociais, entre outras diversas formas de obter conhecimento literário.

Entretanto, ao chegarem na sala de aula, todos esses elementos devem ser deixados de lado para entenderem a representação tida como “oficial”. Isso provoca conflitos que levam à indisciplina, indiferença ao ensino e aumento no número de falta dos estudantes.

O problema, de acordo com a pesquisa, é que a escola valoriza apenas a abordagem da literatura que considera o cânone literário. Então, espera-se um aluno que “olhe para o Machado de Assis e reconheça de imediato que aquilo é importante”, porém, ninguém nunca explicou aos estudantes qual o motivo do Machado de Assis ser importante para a história literária do país.

O trabalho destaca que os jovens buscam muitas referências de leitura na internet, através de blogueiros e youtubers que lançam livros e os alunos os compram para ler e livros baseados em filmes — por exemplo, os livros da saga Harry Potter, da escritora britânica J. K. Rowling, ou A culpa é das estrelas do John Green.

Eles também acompanham os hábitos literários de pessoas próximas, compram jornais, revistas de adolescentes e fanfics — narrativa ficcional escrita por fãs, publicadas nas redes sociais e plataformas de leitura. “O universo virtual é muito significativo para os alunos terem acesso à literatura, informação e até mesmo conteúdo escolar. ”

Apesar de terem acesso a diversas formas de leitura, Patricia explica que, para os jovens, a literatura está no mesmo patamar de importância de outros lazeres como ouvir música, ir ao shopping e cinema. “Os jovens têm uma relação descomplicada com a literatura, não a veem como algo sacralizado”. Ela também destaca a importância de bancas de jornais próximas às escolas e residência dos estudantes. “Esses locais se constituem como fontes importantes e muito significativas de acesso a objetos de leitura como revistas, jornais e livros”.

As bibliotecas públicas não foram mencionadas na entrevista que a estudiosa realizou com os alunos. As salas de leitura, presente em ambas escolas pesquisadas, não são locais de interesse dos educandos devido às limitações de tempo para a leitura e às próprias professoras que não planejam atividades nesse local para as turmas de ensino médio.

As professoras, durante as entrevistas realizadas, relataram que os alunos não leem e não tem interesse. No entanto, através das enquetes realizadas com os alunos, a pesquisadora constatou que isso não é verdade. Os estudantes lêem muitas coisas, mas elas “não fazem parte do cânone escolar, tornando-se invisível na escola”.

Hábitos pessoais e formação

As professoras disseram também que seus hábitos de leitura não coincidem com aquilo que lecionam em aula. Segundo Patrícia, a posição do docente nesses conflitos é muito difícil, pois elas têm que ensinar uma prática de leitura que defendam, mas que é “quase um discurso” porque mantém outra prática de leitura na vida pessoal.

Para Patrícia, os cursos de formação possuem muitos problemas no que se refere a esse ensino de leitura. Eles ignoram o passado das professoras — que afirmaram a sua introdução literária através de músicas e histórias orais, ensinando apenas a prática de leitura mais valorizada.

“Temos que pensar a escola como um espaço de democratização de conhecimentos, devendo ser local das diferentes referências do conhecimento”. A pesquisa indica a necessidade dos cursos de formação possibilitarem as docentes relacionarem suas referências literárias junto à literatura canônica.

Além de demonstrar que existem diferentes referências literárias, com a formação de professores e alunos possibilitando que estes transitem entre as distintas formas de leitura e percebam às múltiplas representações de leitura. “Precisamos construir elos entre às práticas culturais dos estudantes e das professoras com a cultura escolar e, se for o caso, introduzir alterações que deem conta dessa realidade”.

A pesquisadora explica que para isso acontecer não é necessário “jogar fora todos outros conhecimentos antigos” e apenas trabalhar com o novo ou vice-versa. O que deveria acontecer é o ensino que mostre o diálogo entre ambos conhecimentos. Através da incorporação da ideia de que “existem leituras no plural”, pode-se construir um currículo ou uma prática pedagógica que dê conta desse dilema dos alunos se considerarem “não-leitores”, por não gostarem daquilo ensinado na escola.

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