Estudo sobre evolução do campo magnético da Terra propõe hipóteses para as variações na América do Sul

Campo magnético da Terra. Créditos: BBC
Ilustração mostrando as camadas da Terra. Créditos: Júlia Mayumi

Embora o espaço sideral seja palco da maioria das obras de ficção científica mais famosas, o mundo debaixo de nossos pés também recebe alguma atenção. Jules Verne, o pai dos livros do gênero, escreveu em 1886 a obra “Viagem ao Centro da Terra”, em que explora o lado da Terra que, assim como nas pessoas, muitas vezes é deixado em segundo plano: o lado de dentro. E não foi só o escritor que se interessou pelo tema: a Geofísica é uma ciência dedicada a entender o que acontece nas camadas do nosso planeta.

É importante entender como o campo funciona porque ele interfere na radiação que chega até o solo. Além disso, essa interferência está diretamente relacionada aos sistemas de comunicação, como os satélites. Alterações no campo magnético podem prejudicar o envio de informações aos quatro cantos da Terra.

A intensidade do campo magnético sofre alterações ao longo do tempo, e esse foi o objeto do estudo realizado por Wilbor Poletti em sua tese de doutorado no departamento de Geofísica do Instituto de Astronomia e Geofísica da USP (IAG-USP).

A estrutura interna da Terra, de maneira simplificada, é dividida em quatro partes: o núcleo interno, sólido e metálico; o núcleo externo, líquido e metálico; o manto, sólido e formado essencialmente por silicatos; e a crosta, que é a camada mais superficial. O campo magnético é gerado pela movimentação das correntes elétricas nos fluidos no núcleo externo e está praticamente alinhado com o eixo de rotação do planeta. A Terra possui um polo ao norte e outro no sul, que orientam as linhas de força desse campo, o tornando fortemente dipolar não é exatamente um dipolo porque a interação do fluido com o manto gera uma troca de calor, fazendo com que o movimento não seja perfeito.

A medição dessa intensidade pode ser feita de duas formas: com medidas diretas e as estimativas indiretas. No primeiro caso, é feita de forma instantânea por observatórios com precisão e grande cobertura. Já no segundo, utilizam-se materiais arqueológicos para fazer o registro de tempos passados.

Por exemplo, na fabricação de utensílios feitos de argila, como potes e telhas, o material é moldado e aquecido. Quando estão acima de 580ºC, a temperatura de equilíbrio, os momentos magnéticos tendem a se alinhar com o campo magnético da Terra. Ao ser resfriado, o objeto registra a intensidade do campo terrestre naquele instante. Isso acontece porque, quanto maior a temperatura, menos estável é a magnetização.

Ilustração explica o registro do campo magnético em potes. Créditos: Júlia Mayumi

A análise dos artefatos é feita em laboratório, através de vários métodos. Dois deles são por aquecimento e por micro-ondas. O aquecimento convencional é quando o objeto é colocado em um forno especial e a temperatura é aumentada de forma controlada. Ao mesmo tempo, um campo magnético de intensidade conhecida é induzido, de forma a trocar a magnetização natural por uma artificial. Através desse processo, é possível obter os dados necessários para utilizar a Teoria de Néel, uma fórmula matemática que ajuda a encontrar a intensidade do campo da Terra no momento em que o objeto foi confeccionado.

A aplicação de micro-ondas é um método utilizado na Universidade de Liverpool, onde Wilbor estagiou. Nesse sistema, ao invés de aquecer a amostra, o objeto entra na frequência de ressonância do mineral magnético magnetita. Como o mineral é diretamente atingido, não há alteração da amostra, como ocorre no aquecimento convencional.

Na Inglaterra, Wilbor fez experimentos para comparar os dois métodos, e notou diferenças na taxa de resfriamento — resfriar o material em laboratório é muito mais rápido do que na natureza, de forma que a diferença precisa ser corrigida nos cálculos. Além disso, o pesquisador notou que as micro-ondas na verdade aquecem a amostra, ao contrário do que se pensava.

De volta ao Brasil, o pesquisador realizou um estudo sobre as Missões Jesuíticas, grandes vilarejos construídos por padres no período colonial, e sobre as fazendas de charque. Foram coletados materiais para análise, pois a região Sul tinha pouquíssimos dados. O campo magnético desse local era, até então, calculado a partir de modelos teóricos e estimativas.

Na verdade, não é só a região Sul do Brasil que tem poucos registros. No banco de dados mundial de intensidade do campo magnético por período histórico, a América do Sul representa apenas 3,8%. Como a maior parte desses dados é antiga, Wilbor decidiu aplicar uma série de critérios atuais para seleção de dados experimentais. Dentre eles, uma margem de erro máxima de 100 anos (algumas informações têm mais de 400 anos de margem) e outros critérios técnicos. O resultado foi a diminuição dos poucos dados disponíveis, além de evidenciar dois períodos de tempo em que quase não há informação.

Gráfico mostrando os dados referentes à América do Sul antes e depois da aplicação dos critérios atuais. Os espaços com fundo azul representam os períodos em que quase não há informação. Créditos: Wilbor Poletti.

Sobre esses dois momentos, Wilbor explica que se devem à colonização. “Durante o período colonial, há mais registros do que anteriormente”.

O pesquisador se voltou novamente para a base de dados mundial e aplicou os critérios de seleção em todos os registros, não só àqueles referentes à América do Sul. Novamente houve uma queda brusca na quantidade de informação disponível: de 2500 registros, só 500 foram aprovados. Isso aconteceu porque eram dados muito antigos, e, à época em que foram relatados, a seleção não era feita de forma minuciosa.

A partir daí, Wilbor gerou um novo modelo para tentar descrever a evolução do dipolo. “Gerei um modelo que mostra que o dipolo da Terra, desde 750, mais ou menos, vem decaindo de forma linear. Nenhum outro modelo estava vendo isso”. A explicação mais provável é que os dados sem filtro não deixavam essa informação visível.

Mas porque essa queda estaria acontecendo? A hipótese mais provável é a chamada movimentação de fluxo reverso. Na Terra, as linhas do campo magnético saem do norte e entram no sul, via de regra. Mas, como toda regra, há exceções: algumas linhas fazem o caminho contrário, e, por isso, são chamadas de fluxos reversos. Por estarem opostas às outras linhas, tendem a diminuir a intensidade do campo. Isso acontece devido a anomalias e essa falha existe desde 700 d.C. e não 1840, como se acreditava. “Abrimos uma margem de estudo porque agora é possível truncar uma janela e tentar entender o que aconteceu no núcleo que gerou essa assimetria”.

As linhas de campo magnético estão concentradas nos polos e dispersas na linha do Equador, por isso, nessa região, o campo tende a ser mais baixo. Porém, na América do Sul, a intensidade do campo é muito menor do que se esperaria, e isso acontece devido a uma anomalia. Ainda não se sabe por que ela acontece, mas pesquisas mostram que, graças a ela, essa região recebe mais radiação do que outras, o que pode gerar consequências na saúde das pessoas que aqui vivem. A pesquisa de Wilbor não focou nessa anomalia, mas ele explica que é importante estudá-la, pois ela pode, além de gerar doenças, interferir nos sistemas de comunicação. “A minha pesquisa em si foi bem ciência de base, mas ela tem alguns braços de aplicações, associadas a patologias, comunicações e satélites”.

1 Comentário

Deixe uma resposta para Ivana Cancelar resposta

Seu e-mail não será divulgado.


*