Diabetes na gravidez promove alterações na formação de fetos

Testes indicam que filhotes têm rins com modificações semelhantes às de adultos diabéticos

Imagem: Observatório da Saúde RJ

Doença crônica que resulta em altos níveis de açúcar no sangue e afeta quase 9% da população brasileira, o diabetes é estudado por diversas áreas da medicina e biologia. Inclusive pelo Laboratório de Biologia da Reprodução e Matriz Extracelular, hoje liderado pela professora Telma Maria Tenório Zorn, do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP.

O que se tem descoberto são significativas modificações no desenvolvimento de células formadoras de órgãos em filhotes de mães diabéticas, como os rins. Além disso, também se propõe ressaltar as já evidentes e divulgadas alterações que ocorrem no próprio organismo da mãe, como o espessamento do colágeno no miotério (músculo do útero) e mudanças na placenta.

A história do laboratório explica a junção de temas que hoje norteiam o estudo abordado nesta matéria. Inicialmente, foi criado pelo professor Paulo Abrahamsohn o laboratório focado em reprodução, com pesquisa voltada para tecidos do útero. O professor Abrahamsohn logo passou a ter contribuição da professora Telma na área da matriz extracelular (MEC), cuja constituição se dá, em linhas gerais, por moléculas que juntam as células e sustentam os tecidos. A curiosidade pela relação entre MEC e os estudos sobre o útero se deu justamente pelas mudanças observadas na matriz extracelular quando das diferentes fases da gestação.

Os estímulos a respostas em células e sinais em receptores, que podem inibir algum ciclo celular ou gerar mais ou menos produção de proteínas, são exemplos de como a MEC também pode agir no organismo. Depois de muito tempo viu-se que ela desempenhava outras importantes funções, além da mecânica-estrutural. “[A matriz extracelular] sustenta, de fato, mas há uma conversa molecular com a célula. Dependendo do tipo de molécula, a célula divide ou não divide, a célula migra ou não migra, cresce ou não cresce”, explica a professora se referindo aos inúmeros tipos de MEC, como colágeno e fibronectina, por exemplo.

O interesse do laboratório pelo diabetes surgiu da ideia de se estudar a relação entre matriz extracelular e tecidos uterinos de maneira além de meramente fisiológica, investigando as alterações que uma doença poderia trazer. E a opção pelo diabetes veio justamente pela composição dessas moléculas: “como são glicoproteínas – isso quer dizer que têm radicais de açúcar –, a gente imaginou que um desbalanço na quantidade de açúcar e de glicídios no sangue poderia promover mudanças no que estávamos estudando”, conta Telma.

 

Na figura, fibras de colágeno se entrelaçam com proteoglicanos na matriz extracelular (MEC)
(Imagem: OpenStax Biology)

Um dos principais resultados divulgados a respeito dos efeitos do diabetes para a gestante são as transformações geradas no miotério, músculo da parede uterina que trabalha durante o parto. A doença gera um espessamento do músculo, que ocasiona uma redução da contratilidade, proporcional ao aumento da rigidez das paredes e penoso para o momento de dar à luz.

O experimento

Para estudar as alterações, criou-se um modelo de gestação experimental com diabetes do tipo 1 (ou Mellitus) em camundongos. A indução da mãe à condição diabética representa um desafio, pois a injeção da droga – aloxana, que inibe a produção de insulina – é delicada e muito específica, visando a concentração de glicose de 400mg/dL no sangue. A dosagem deve ser rigorosa e ajustada, sem ultrapassar os níveis que o animal aguenta, porque é necessário que a mãe seja mantida viva até o nascimento dos filhotes.

Após o acasalamento, há a interrupção da gravidez no 19º dia, dois dias antes da duração normal de gestação. E por que não o parto não ocorre de forma natural? Isso ocorre porque durante ele são liberados diversos hormônios que maturam e alteram os órgãos, promovendo interferências por outros meios que não aqueles pretendidos pelo laboratório.

Depois disso são colhidos os dados fisiológicos da mãe e do feto, e os órgãos do feto são cortados bem finos, a fim de preservar seus tecidos o máximo possível, com o auxílio de um fixador em um bloco de parafina.

Enfim, são feitas as análises: o material é enviado a uma lâmina, onde é corado e marcado pela imunohistoquímica. “A histoquímica é o método, o carro-chefe do laboratório, a partir do qual é possível ter o controle do experimento e comparação entre o grupo controle e o grupo afetado”. A técnica usada consiste em aplicar um anticorpo contra a molécula que se quer identificar. “Isso significa que se o objetivo for estudar colágeno tipo 1, é preciso pegar aquele tipo de molécula de outra espécie e injetar no camundongo. Como o organismo só aceita moléculas da mesma espécie, o sistema imunológico produzirá anticorpo contra elas”, esclarece a professora. Assim, é possível marcar o anticorpo e acompanhar sua localização e distribuição no tecido, sempre comparando o animal diabético àquele pertencente ao grupo-controle.

Imunolocalização de colágeno tipo I em parede uterina no grupo controle e no grupo diabético (Imagem: Tese de doutorado de Rodolfo Favaro Ribeiro – 2011)
Identificação da deposição de fibras colágenas pela técnica histoquímica chamada Picrosirius (Imagem: Tese de doutorado de Rodolfo Favaro Ribeiro – 2011)

 

Resultados

Especificamente, o principal órgão que vem sendo estudado é o rim. E por quê? “Podíamos estudar todos os órgãos. Mas começamos pelo rim porque, no diabético adulto, é um dos órgãos mais afetados. Então por que não começar pelos órgãos mais prejudicados por uma pessoa que tem o diabetes?”, justifica a mestranda do laboratório, Carina Pereira Dias, cuja dissertação segue uma linha parecida, mas em relação ao pâncreas. “Quando falamos de diabetes, o pâncreas é o órgão que produz a insulina, então também é diretamente afetado pela doença”, conclui Carina.

O que se descobriu até agora em relação aos dois órgãos é que, sobre o primeiro, os fetos de 19 dias apresentam modificações na matriz do rim também vistas em adultos diabéticos. Ou seja, em um tempo muito mais curto, o filhote já tem condições semelhantes somente por ser filho de uma diabética, sem ter desenvolvido diabetes ao longo da vida. Quanto ao pâncreas, observou-se que modificações na matriz extracelular motivadas por esse ambiente de hiperglicemia podem levar a alterações principalmente de células produtoras de insulina. Isso indica uma inversão de papéis: se no adulto diabético há uma disfunção que impede o funcionamento adequado das células-beta, as produtoras de insulina, e isso gera diabetes, no feto acontece o contrário. No adulto há disfunção das células-beta, mas, no embrião, é mais precoce: o diabetes da mãe está prejudicando o desenvolvimento dessas células, que às vezes nem chegam a se formar.

Porém, isso não significa que o feto passa a ter a condição de diabético. Para determinar isso, seria necessário um maior tempo de avaliação, até que os animais chegassem à vida adulta, conta Carina. Uma diferenciação importante é entre hiperglicemia e diabetes. Os animais foram gestados em ambiente com uma elevada quantidade de glicose, mas não necessariamente são diabéticos. “Houve glicação, não glicosilação. Glicosilação é o processo natural em que o açúcar gruda na proteína, o que faz mudar sua estrutura, alterando a afinidade com outras moléculas. Glicação é quando você tem um excesso de açúcar”, explica a mestranda. No entanto, é possível afirmar que esse tipo de modificação pode anteceder ou indicar um quadro assim, o que traz um alerta importante.

As mudanças têm sido estudadas, mas, segundo Camila Silva, que se insere no laboratório da professora Telma por uma iniciação científica, o mais relevante foi mostrar a trajetória e a “história do laboratório: estudamos MEC, como era; vimos as alterações no ambiente uterino nas condições fisiológicas da gestação; vimos modificações frente ao diabetes; e depois também conseguimos estudar como se refletiram no feto. É uma história muito bonita que se construiu ao longo dos anos”. Seria interessante agora, para a estudante do 4º ano do curso de biomedicina, continuar o projeto buscando investigar se as alterações são funcionais, depois de ter confirmado sua existência.

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