Mesmo depois de eleitas, mulheres enfrentam barreiras para participar da política

Pesquisa da USP analisa o conteúdo da representação feminina nos parlamentos brasileiros

Deputada Maria do Rosário é confrontada em sessão sobre violência contra a mulher. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Não basta ser mulher, não basta ter sido escolhida pelo povo. A situação de sub-representação feminina na política brasileira vai para além dos números, que por si só são baixos. Em um ranking formado por 33 países latino-americanos e caribenhos em relação à participação feminina nos parlamentos, o Brasil ocupava, em 2016, a 32ª posição. Um relatório da União Interparlamentar (IPU) do mesmo ano colocou o país no 154º lugar de 172, considerando o índice de participação de 10,7% de mulheres na Câmara e de 14,8% no Senado. É essa a primeira barreira: ser mulher e ser escolhida pelo povo.

Para entender melhor não só os motivos para tais números, como também a importância da presença feminina nesses espaços, a internacionalista Beatriz Sanches desenvolveu, no Departamento de Ciência Política da USP, sua dissertação de mestrado intitulada Teoria política feminista e representação: uma análise da bancada feminina da Câmara dos Deputados.

Com a pesquisa, ela busca endossar o debate em torno da democratização dos espaços de poder. “O que a gente fala é que temos uma democracia representativa liberal, que desde 1932 as mulheres podem votar. Só que o fato das mulheres poderem votar desde 32 não significou uma participação política equânime até hoje. As mulheres representam 52% do eleitorado, 51% da população e 10% das cadeiras na Câmara dos Deputados”, aponta.

Em oposição às teorias tradicionais da representação, a dissertação dialoga principalmente com a produção teórica feminista. “Para a ciência política hegemônica, se as instituições estão funcionando bem, não é uma questão se as mulheres estão incluídas ou não estão, a democracia está acontecendo. Estudiosas feministas questionaram isso, dizendo que a democracia não vai ser efetiva enquanto grupos minoritários não forem incluídos”.

Em termos de metodologia, Beatriz se dividiu em duas etapas: primeiro, analisou o perfil das parlamentares em questões como religião, escolaridade, origem e temáticas de trabalho. Em seguida, explorou a atuação da bancada feminina em determinados projetos de lei. Com isso, pôde descobrir quem são essas mulheres, que interesses elas representam e o que as impede de atuar de maneira independente.

Menor custo, mais mulheres

Sobre o perfil das parlamentares, um dado chama atenção: a presença proporcionalmente maior de mulheres do Norte em relação ao Sudeste. A informação se relaciona com o peso do financiamento de campanha em cada região. “No Norte, as campanhas eleitorais custam menos dinheiro do que no Sudeste, e as mulheres recebem menos dinheiro dos partidos para as campanhas. Então onde as campanhas têm um custo menor, as mulheres têm mais chance de se eleger”, explica Beatriz.

No que diz respeito à religião, a maior parte das deputadas são católicas, o que corresponde à porcentagem de mulheres católicas no Brasil. Enquanto isso, no âmbito da educação, nota-se uma diferença entre as brasileiras e aquelas que as representam na Câmara. A grande maioria das parlamentares possui ensino superior completo, o que não é verdade em relação à população feminina brasileira. O alto grau de escolaridade dentro do Parlamento se aplica tanto ao sexo feminino quanto ao masculino. Isso demonstra a elitização deste universo, e mais, oferece outro aspecto da desigualdade de gênero, já que as mulheres são maioria com diploma de ensino superior e continuam ocupando tão pouco espaço na política.

Não basta ser mulher

Entre 1995 e 2010, em um universo que compreende mais de 25 mil projetos propostos, menos de 2 mil são de autoria feminina (7,91% do total). Tratando-se dos aprovados, que somam 501, 69 são de deputadas, o que corresponde a 13,77% do total. É interessante notar uma porcentagem maior entre os projetos aprovados, constatando a efetividade das propostas dessas mulheres. Ainda assim, os números são baixos.

Ao lado de questões institucionais, a divisão sexual do trabalho tem influência na divisão de projetos e comissões. “As mulheres atuam mais em temas considerados femininos, como política social, educação, assistência social em geral, e os homens atuam mais em temas considerados masculinos, como tributação, economia, e isso tem muito a ver com a alocação que os partidos fazem dessas mulheres. Não tem a ver tanto com uma coisa delas próprias”, afirma a pesquisadora.

Articulação da bancada feminina em 2015 para a tipificação do feminicídio. Foto: Agência Câmara

Pode-se dizer que mulheres ficam inseridas em temáticas socialmente consideradas femininas por ser o único nicho disponível para elas no campo político, o de menor prestígio. Como Beatriz destaca em seu estudo, embora a “política maternal” — conceito que pressupõe maior sensibilidade por parte das mulheres para tratar de certos assuntos — proponha uma alteração na hierarquia de prestígio das atividades políticas, mulheres acabam ficando confinadas em temas sociais, perpetuando estereótipos.

Segundo ela, não é suficiente ter uma inclusão de mulheres dentro dos Parlamentos sem que essa inclusão também aconteça nos cargos responsáveis pela tomada de decisões nos partidos. Essa é uma ideia dissecada pela filósofa Nancy Fraser, utilizada na dissertação. “Não adianta nada você ter paridade nas instituições políticas se você não tiver redistribuição dos recursos materiais entre as mulheres”, declara Beatriz.

Pensando na articulação da bancada feminina em torno de leis que promovem a igualdade de gênero, nota-se uma união em determinadas pautas. É quando a presença das mulheres faz a diferença. Foi o que aconteceu com a Lei Maria da Penha, na qual houve consenso entre as parlamentares a respeito de sua urgência, muito embora os argumentos para sua aprovação tenham sido distintos. Marina Raupp, filiada ao MDB, por exemplo, ressaltou em seu discurso o papel da mulher como mãe e a necessidade de acabar com a impunidade em casos de violência doméstica. Já Luiza Erundina, do PT, fez referência à luta das mulheres, o que pode ser explicado por trazer em sua agenda pautas levantadas pelos movimentos populares.

Essa presença, no entanto, tem limites. Chega um momento que a ideologia partidária acaba pesando mais do que o gênero na posição que essas mulheres vão adotar, como na questão do aborto. “Pode ser que de fato essas mulheres concordem com o que o partido está falando, mas também tem a questão da disciplina partidária, do quanto essas mulheres não podem se opor à posição dos partidos, porque senão elas vão sofrer retaliações”, explica Beatriz, citando o caso da vereadora Juliana Cardoso (PT-SP), que após não seguir a orientação partidária em uma votação, foi impedida de se candidatar a senadora.

Não basta ser uma mulher eleita: é preciso querer e, mais importante, ter liberdade para defender os interesses femininos. “Tem uma diferença na teoria da representação sobre políticas de presença e políticas de ideias. Não é suficiente ter a presença desses grupos, mas as ideias desses grupos tem de ser representativas do que esses grupos acreditam”, pondera.

Limitada, porém crescente

Sâmia Bomfim, deputada federal recém-eleita pelo PSOL. Foto: Lucas Lima/UOL

Sua hipótese inicial, de que é importante ter mais mulheres em cargos políticos, foi parcialmente comprovada. Estudos parecidos realizados em outros países chegaram às mesmas conclusões: que se não tivessem mulheres nos Parlamentos, certos debates não teriam sido colocados como prioritários. No entanto, há limites. “A bancada feminina não representou todos os interesses dos movimentos feministas, principalmente no caso das mulheres das bancadas religiosas, das bancadas de partidos de direita, que votaram contra algumas pautas que são caras pros movimentos feministas”.

Apesar disso, o paralelo traçado por Beatriz entre seus estudos e a atual conjuntura política é otimista. “Nos últimos anos, a gente viu um crescimento na mobilização feminista, e inclusive de candidaturas feministas. Nas eleições de 2016, a gente já podia observar esse processo, a própria Marielle foi eleita a partir disso, da mobilização dos movimentos feministas”, relata.

Os resultados desta eleição parecem confirmar as perspectivas positivas da internacionalista: a próxima legislatura (2019-2022) possui o maior número de deputadas da história. Foram eleitas 77 deputadas federais, 15% a mais em relação a 2014. Muitas delas, militantes de causas sociais, em mandatos individuais, como o de Sâmia Bomfim, em São Paulo, e coletivos, como o da chapa “Juntas”, no Pernambuco, formado por 5 codeputadas.

Agora em uma nova pesquisa, Beatriz estuda a relação entre os movimentos feministas e o legislativo, para capturar todo o panorama. “Percebi que não conseguiria entender essa articulação da bancada feminina se eu não levasse em consideração o papel dos movimentos. Espero demonstrar que os movimentos de fato fizeram a diferença em algumas campanhas, que as mulheres levaram adiante, que tiveram influência na vida concreta das mulheres brasileiras”.

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