Água: um direito ou um produto?

Recentes sinalizações de privatização da água reacendem debates sobre a gestão hídrica no Brasil

Interesses conflitantes disputam a gestão da água. Ilustração: PCdoB

Por Bruno Carbinatto, Giovanna Costanti, Laura Molinari, Letícia Teixeira e Wender Starlles 

Imaginar um mundo sem água é difícil: seja para consumo, higiene ou mesmo um incômodo no dia a dia, esse recurso sempre se mostra presente e naturalizado nas nossas vidas. Mas por trás do copo, do banho ou da própria chuva se esconde uma importante questão de ordem econômica, social, política e ambiental: a gestão desse recurso no Brasil.

Em janeiro deste ano, o presidente Michel Temer se reuniu com o dirigente da Nestlé — o belga Paul Bulcke —, o que, segundos muitos militantes e especialistas, significaria uma aproximação promíscua do governo com os interesses privados, com o intuito de privatizar a água. Esta, por sua vez, é um direito humano, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), e deve ser oferecida a todos de forma digna e acessível.

O suposto choque entre esses interesses demonstra uma preocupação com o avanço do capitalismo e a espoliação de direitos. No entanto, a questão é ainda mais complexa: ao contrário do que muitos pensam, a privatização da água, em partes, já existe no país, mesmo que uma ausência total do Estado seja improvável.

Como funciona no Brasil

A gestão de águas é um dos principais desafios do século 21. Países de todo o mundo buscam um modelo ideal que seja sustentável e ao mesmo tempo viável para implementação na sociedade, visto que há escassez desse recurso tão precioso — e no Brasil não é diferente. O crescimento da população, principalmente nas grandes cidades, e a degradação decorrente das atividades industriais, agropecuárias e de mineração ameaçam cada vez mais a qualidade do bem.

O Brasil conta com uma reserva imensa de água doce, disponível, em partes, nas várias Bacias Hidrográficas, que incluem o maior rio do planeta em volume hídrico e imensos aquíferos subterrâneos — totalizando cerca de um décimo de toda água potável do mundo. Esse montante abastece a produção de vários insumos e serve também para o consumo de aproximadamente 209 milhões de brasileiros. Mas analisar somente os dados brutos pode enganar: apesar de números impressionantes, a realidade mostra que a disparidade entre as cinco regiões geográficas é enorme. Enquanto 80% do volume se concentra no Norte do país, graças aos inúmeros rios, as demais áreas compartilham os outros 20%, também de forma desigual, já que a diferença atinge também a logística.

Foi pensando em resolver dilemas de distribuição, controle, qualidade e preservação que a lei nº 9.433 em 8 de janeiro de 1997 foi criada. Mais conhecida como Lei das Águas do Brasil, se trata de um importante instrumento voltado à gestão dos recursos hídricos de domínio federal. Ela se baseia em alguns princípios fundamentais: a água é um bem de domínio público, limitado e dotado de valor econômico; em situações de escassez, o uso prioritário é de consumo humano e animal; a gestão deve sempre proporcionar o uso múltiplo do recurso e ser descentralizada, contando com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades; e, por fim, a bacia hidrográfica é definida como a unidade territorial na visão da legislação.

Juntamente com essa jurisprudência, foi criado o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (Singreh), para executar o planejamento e administração das águas brasileiras. A instituição é composta em nível federal pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos, Ministério do Meio Ambiente e ANA — Agência Nacional de Águas. Já no estadual, quem tem o comando são os conselhos estaduais de recursos hídricos, as secretarias de meio ambiente e os órgãos gestores. No contexto das bacias hidrográficas, os comitês de bacias, as agências de águas e secretarias são responsáveis pelo controle. Essa forma de matriz busca fomentar uma gestão totalmente descentralizada, participativa e a mais democrática possível.

Dessa forma, o Estado está sempre presente de alguma forma no exercício de gestão. As parcerias público-privado (PPP), tendência recente no País, no entanto, representam o que para muitos pode ser uma ameaça ao direito generalizado de acesso à água. Com o aumento da iniciativa privada no processo, muitos temem que, inclusive, ela vire exclusivamente um produto — pago e, acima de tudo, caro.

Há perspectivas de privatização total?

O professor do Instituto de Geociências (IGc) e vice-diretor do Centro de Pesquisas de Águas Subterrâneas (Cepas) da USP, Ricardo Hirata, acredita que não. “A dificuldade estaria nas mudanças da lei e de incisos da própria Constituição, que preveem que a água é um bem público e asseguram à união e aos estados o direito sobre os recursos hídricos”, explica. Para ele, não faz sentido que uma empresa se sujeite a ir contra a lei quando, hoje, qualquer empresa pode pedir a outorga de poços em qualquer aquífero e em quase qualquer lugar.

“Há poucas áreas onde a autorização para o uso do recurso é restrita, como Ribeirão Preto, Recife, o bairro do Jurubatuba, em Santo Amaro. No restante, o pedido correto, bem conduzido por técnicos, dará ao proprietário o direito do uso da água por um dado período”, explica Ricardo.

Edson Aparecido, do Coletivo Luta Pela Água e um dos organizadores nacionais do Fórum Alternativo Mundial da água (Fama), também garante que as águas não podem ser privatizadas com a mesma facilidade que outros serviços, como saneamento básico e energia. “Para serem utilizadas, as águas necessitam de um instrumento chamado outorga”, explica ele. “O que pode acontecer é a flexibilização da outorga para o atendimento de interesses de grandes grupos econômicos”.

A discussão da privatização coloca em pauta o controle, por grupos econômicos, ao acesso a recursos hídricos subterrâneos. No Brasil, 60% a 70% dos poços não têm outorga, por isso é mais fácil que o estado não fique sabendo da existência deles. “Caberia ao Estado garantir a equidade do uso do recurso subterrâneo, entretanto, há sempre dificuldades de enfrentamento entre o setor privado e o governo”, pontua Ricardo.

Hoje, as águas são gerenciadas por um sistema que atua por meio de Comitês de Bacia Hidrográfica. Esses comitês são participativos, envolvendo estados, municípios e   sociedade civil, integrados, com controle público sobre a gestão da água. “Com certeza esses seriam fóruns de extrema resistência para esse novo modelo”, comenta Ricardo.

Um tiro pela culatra

Apesar de a privatização total da água ser algo pouco provável para o Brasil, as grandes corporações buscam cada vez mais aumentar seu poder e sua influência sobre esse recurso estratégico. Modelos mistos de gestão ou a total concessão temporária do fornecimento e controle são aplicados em diversas cidades do país. Sendo parcial ou total, a participação de empresas privadas no setor hídrico é vista com maus olhos e preocupa especialistas.

Wagner Costa Ribeiro, geógrafo e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, explica que, após a Sabesp ter parte de seu capital privatizado em 1994, “os indicadores mostraram que essa água melhorou, mas o acesso a coleta e tratamento de esgoto não”. Ele cita como o exemplo a recente crise hídrica que afetou regiões do País, como São Paulo, em que, segundo o pesquisador, a Sabesp teria privilegiado a distribuição do escasso recurso para grandes empresas com alto consumo, por questões contratuais, enquanto a população, que consome quantidades bem menores se comparado, acabou ficando de lado.

Na opinião de Edson Aparecido, o caráter privado da Sabesp não apenas fez com que empresa tomasse decisões erradas durante a crise de 2014 e 2015, como também que ela evitasse a própria existência da escassez. “Isso mostra que qualquer serviço que não tenha um caráter estritamente público fica vulnerável às crises de abastecimento porque a lógica que predomina é a lógica de garantir receitas e lucros”. Ao observarem esses padrões de comportamento das empresas gestoras, ambos os especialistas têm perspectivas pessimistas quanto ao aumento da interferência do capital sobre os recursos hídricos.

Para o geógrafo, as consequências de uma total privatização das reservas e nascentes de água seriam prejudiciais às pessoas: “Os estudos mostram que não há um crescimento do serviço, parte da população que já não tinha o acesso [à água] não consegue tê-lo, e as tarifas ficam mais caras”. O ativista reitera essa opinião, uma vez que para o setor privado, “não existe preocupação estratégica com relação ao futuro do país, a visão do lucro se relaciona com a noção do curto prazo”.

Outra preocupação dos entrevistados é quanto a sustentabilidade. No modelo de consumo da água utilizado pelos meios privados, segundo eles, se prioriza sempre a coleta ao invés do reuso, o que gera a busca por abertura de novos poços, cada vez mais longe. A alternativa seria, de acordo com Wagner, pensar em estratégias mais racionais de uso de água, para diminuir seu desperdício e aumentar a reutilização, não sendo necessário aumentar a coleta — tendência que obedece à visão de lucro das empresas.

No restante do mundo

A gestão de águas de cada país é extremamente única, visto que depende dos fatores naturais da Nação. No entanto, a maioria segue o perfil público da gestão de águas, com alguns países mantendo os serviços de saneamento básico privados. “O importante nesse caso é sabermos que o mundo vive uma onda de reestatização do setor de água e saneamento”, lembra Edson.

Um mapeamento de 11 instituições europeias identificou que 267 cidades reestatizaram o serviço de água e saneamento desde o começo desse milênio. Entre elas, estão grandes centros metropolitanos, desde países europeus até os nossos vizinhos: Berlim, Paris, Buenos Aires e La Paz, por exemplo. Essas cidades perceberam piora nas quedas dos indicadores de qualidade e distribuição do recurso, bem como um fator crucial — aumento dos preços. E não foi só essa área que sofreu desprivatização: setores como coleta de lixo, transporte, educação e saúde também somam ao número, totalizando 835 casos de remunicipalização, de acordo com o mesmo relatório. Segundo Edson, a questão vai ainda mais longe: “Na Inglaterra, berço da privatização nos anos 1990, também há uma grande e recente discussão sobre a reestatização das empresas privatizadas”.

O Brasil, no entanto, se mostra novamente na contramão. O programa de PPP que se iniciou recentemente atingiu diversos estados e é sintetizado pelo caso do Rio. A venda da Companhia Estadual de Água e Esgoto (Cedae) foi aprovada em 2017 pela Assembleia Legislativa do Rio (Alerje), sob protestos de grupos contrários. Porém, a cidade de Itu, no interior paulista, passou pelo processo contrário em 2016, pois a empresa que cuidava da distribuição no município não conseguia garantir água à toda população, o que culminou na reestatização.

Muita água e pouca ação

O Brasil possui um riquíssimo potencial hídrico natural, que detém cerca de 12% da água doce do mundo e bacias hidrográficas que recobrem cerca de 60% do território nacional. Porém, o cenário de distribuição das águas brasileiras ainda ocorre de forma bastante desigual. De acordo com dados de 2016 do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), 17,5% da população ainda não tem acesso a água potável, o que representa cerca de 35 milhões de pessoas. Dados da mesma pesquisa ainda denunciam um despejo de 55% do esgoto diretamente na natureza, sem passar por nenhum processo de tratamento.

Em entrevista à AUN, o professor Marcelo Pompêo, do Instituto de Biociências (IB), mestre em Engenharia Hidráulica e Saneamento e doutor em Ciências da Engenharia Ambiental pela USP, afirma que a base do problema não está na captação de água, mas sim no processo de gestão. A Sabesp, como empresa mista e de capital aberto, possui ações negociadas nas bolsas de valores de São Paulo e Nova York. De acordo com Pompêo, isso possibilita a manipulação da água como sendo mercadoria, visando mais lucro com menores investimentos. Edson reforça tal ideia ao dizer que modelos que capitalizam este recurso priorizam o o benefício próprio. “Porque, na visão privada, a água é um negócio, e quanto mais água se vender, melhor”. E as consequências de um possível agravamento da privatização são claras: “As populações mais pobres serão as mais prejudicadas e terão mais dificuldade de ter acesso a esses serviços, primeiro porque a tendência é haver aumento de tarifas para garantia do lucro, e segundo que as áreas com menos possibilidade de receita serão abandonadas à própria sorte”.

Outro dado apurado pelo SNIS denuncia que 32,8% da água tratada pela Sabesp em 2013 foi desperdiçada em vazamentos ou desvios clandestinos. O percentual é tamanho que representa, aproximadamente, o volume de água produzido no mesmo período por cerca de três ou quatro Guarapirangas, um dos principais reservatórios de água paulistas. Na visão de Pompêo, uma reforma da rede transportadora, reduzindo o percentual de perdas, já supriria a demanda por novas fontes de água.

O problema vai mais fundo — literalmente

As águas subterrâneas são de essencial importância na formação da reserva hídrica brasileira, e muito se comenta sobre a possibilidades desses recursos virem a ser privatizados. Foi assunto que ganhou destaque recente, quando especulações sobre a concessão à exploração por multinacionais do Aquífero Guarani, uma das maiores reservas subterrâneas do Brasil e do mundo, tomou as redes sociais.

De acordo com Hirata, a privatização de um aquífero por completo é pouco provável, visto que isso exigiria um sistema de monitoramento em toda a extensão de suas águas e que cerca de 60% dos poços já existentes no Brasil são irregulares. Além disso, muitos municípios possuem um consolidado abastecimento hídrico que se baseia nas reservas subterrâneas. De acordo com o especialista, os aquíferos estão sob controle dos estados da Federação que os abrigam. “Cada estado deve gerir as suas águas, mesmo em aquíferos que cruzem fronteiras estaduais ou internacionais”, explica.

É preciso que haja o aval de órgãos estaduais para se iniciar a exploração subterrânea, através da concessão de outorgas. E é aí que mora o problema, segundo Hirata: “Há exemplos de mercados de compra e venda de direitos de exploração, como no Chile, no México e nos Estado Unidos. Nesse mercado, os grupos mais capitalizados poderiam comprar mais água em detrimento a outros”.

A visão do professor contempla ainda as questões legislativas: “Caberia ao Estado garantir a equidade do uso do recurso subterrâneo. Entretanto, há sempre dificuldades de enfrentamento entre o setor privado e o governo”. Ele faz referência ao Projeto de Lei do Senado nº 495/2017, que busca alterar a Política Nacional dos Recursos Hídricos introduzindo os mercados de água: “[O PL] pode ter a motivação de uso mais eficiente do recurso; no entanto, isso não necessariamente trará equidade social entre usuários, sobretudo se ele for usado no aspecto mais estritamente econômico”, diz.

Possíveis caminhos

Mesmo em uma gestão não privatizada, ainda há muito a melhorar até atingirmos um patamar ideal. Questões como mudanças climáticas e expansão do desmatamento ainda são empecilhos recentes no tema, e o Brasil, mesmo com um potencial hídrico tão significativo, continua enfrentando problemas de abastecimento em grandes metrópoles e dificuldades de distribuição do recurso, que acaba ficando concentrado em regiões específicas.

Para Edson, “falta integração das políticas de recursos hídricos e de saneamento, com as políticas de irrigação, energia, habitacional, entre outras. Além disso, é importante ampliar os instrumentos para que a população conheça os desafios das políticas relacionadas aos recursos hídricos”.

Ricardo concorda: “É importante que se aprenda a usar a água em suas diversas formas de ocorrência no ciclo hidrológico. Há várias formas, como as águas superficiais, subterrâneas, atmosféricas, e usadas”. A solução, para ele, já está posta — só precisamos saber como utilizá-la. “Temos que aprender a usá-las conjuntamente, para tirar o melhor benefício sociais e econômicos deste recurso e causando os menores impactos na natureza”.

 

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