Intervenções de proteção em abusos sexuais veiculados ao incesto

Imagem: Laura Benvenuti/Thinkstock.

A mitologia grega traz no seu âmago a história de Édipo Rei, personagem destinado a se casar com sua própria mãe, com quem teve dois filhos e duas filhas, e a matar seu pai, o rei que governava a cidade. Essa tragédia escrita por Sófocles aborda um tema importante que perpassa as épocas e adquire novas modulações, mas não deixa de existir: o incesto. Na contemporaneidade, a maioria das ocorrências envolvendo essa prática está acrescida pelo ato do abuso sexual, geralmente cometido contra pessoas menores de idade, que não possuem autonomia para decidir participar daquela ação. São episódios carregados por agressões físicas, ameaças ou até mesmo a coação.

Tendo como base depoimentos de profissionais atuantes na área de atendimentos às vítimas, e as discussões envoltas no assunto, Rose Miyahara elaborou a tese de doutorado Abuso sexual de crianças e adolescentes: um estudo psicanalítico sobre o trabalho de escuta aos sujeitos envolvidos na trama incestuosa defendida em 2018 ao Instituto de Psicologia (IP) da USP. “Em 1994 a gente fundou o Centro de Referência às Vítimas de Violência (CNRVV) do Instituto Sedes Sapientiae. Estudei esse tema desde o começo. Tanto meu mestrado, quanto doutorado procuraram dar subsídio aos profissionais atuantes nessas situações”, contou a pesquisadora sobre a origem do interesse pela temática.

No estudo, Miyahara optou por não utilizar como sujeitos da pesquisa os pacientes, já que, isso implicaria possivelmente em uma exposição involuntária e antiética dos casos. Assim, foram manuseados materiais — relatos trazidos para a supervisão —, colhidos diretamente com profissionais que atendem vítimas de violação sexual. Logo em seguida, dois casos foram selecionados para fazer um aprofundamento de análise. O primeiro de uma menina e outro de um agressor. Ao ser perguntada sobre qual seria a maior contribuição da sua tese Rose respondeu: “Dar subsídios conceituais e teóricos de uma prática  consistente na hora de intervir junto a essa criança, adolescente, essa mãe, pai, avô, enfim. Todos esses sujeitos que compõe a cena incestuosa.”

Por que você me abraça desse jeito?

Alan, 13 anos, vítima de abuso. Participou da Campanha de enfrentamento à violência sexual. Imagem: CEDECA.

Assim como Alan, milhares de jovens sofrem diariamente com abusos e se culpam por isso. Dados do Disque 100, serviço voltado às denúncias de violações de direitos humanos (contra pessoa idosa, privação de liberdade, atenção aos moradores de rua), com foco especial na criança e no adolescente, registrou, somente no primeiro trimestre de 2015, cerca de 4480 casos de violência sexual envolvendo principalmente meninas entre 4 e 7 anos. Além disso, foi diagnosticado que, em 58% dos casos, o abuso aconteceu dentro do próprio domicílio, com indicativa de culpabilidade atribuída ao pai ou av. Os números evidenciam incidência alarmante, e confirmam a velha máxima de o perigo estar em casa.

De fato o fenômeno sempre existiu, durante muito tempo, até por questões culturais acabou sendo abafado. Entretanto, com o passar das gerações inúmeros casos ganharam repercussão nos meios de comunicação, o que está diretamente ligado à inserção do tema nas rodas de conversa. Para a pesquisadora isso se deve a um motivo principal. ”Por conta do movimento internacional de combate às circunstâncias de abusos, violência e exploração sexual de crianças e adolescentes ouvimos falar mais nesse assunto”. Além disso, existe a carta de Declaração dos Direitos da Criança, aprovada pela Assembleia das Nações Unidas em 20 de novembro de 1959 — o documento prega a proteção contra qualquer forma de crueldade, negligência e exploração. Rose ainda comenta a importância dos países frente ao debate. “Quando um país é signatário dessa carta, ele passa a ter compromisso de possuir políticas públicas de enfrentamento a essa situação, na medida em que isso acontece, ganha visibilidade e vai saindo debaixo do tapete”. Indo na vertente o Brasil, que também faz parte do acordo, possui o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA — Lei 8.069, julho 1990), responsável por assegurar direitos a proteção integral à infância.

A trama do incesto

O abuso sexual que acontece na família — cometido por parentes próximos —, é aprisionado no pacto de silêncio, sendo o mais difícil de ser diagnosticado e tratado. Há razões que atestam a ocorrência. ”Por vergonha, por receio dos desdobramentos sociais disso, muitas vezes esse autor da agressão sexual é o provedor financeiro da casa. À medida que ele possa ser preso, isso impacta, inclusive, o padrão social econômico de sustento da própria família”, explicou Rose.

A tese fez o apontamento de três focos como indicações imprescindíveis, em termos de intervenções consistentes para serem realizadas nas ocorrências. O primeiro está relacionado ao tempo para se fazer a avaliação traumática de cada caso. “Antes de encaminhar para qualquer tipo de intervenção, ou dizer se a criança está apta ou não a prestar testemunho, seja no setting de terapia ou jurídico”. Isso permite que a mediação seja mais protetiva, e não exponha ninguém a falar sobre aquilo que não queira no momento — um erro bem comum.  “Quando a criança chega aos serviços de atendimento, ela tem que falar, contar os detalhes, apontar quem é o agressor. Isso pode fazer mal, trazer prejuízo ao voltar a cena, relembrar ou falar sobre aquilo. Temos que esperar o tempo dela”, comentou.

Do ponto de vista do autor da agressão, apareceu na casuística dos atendimentos realizados uma diferenciação importante. “A grande maioria dos homens autores de agressão sexual, não são perversos estruturalmente, ou seja, pedófilos, pessoas que têm transtorno de preferência sexual, e só se satisfazem no relacionamento com uma criança ou adolescente”, comenta sobre o segundo apontamento. “Pais e avós incestuosos são neuróticos, e acabam sendo capturados pelo estímulo social perverso”.

Como conclusão da pesquisa ela ressalta que devemos prestar mais atenção na maneira como o laço social também acaba estimulando o funcionamento cruel dos comportamentos humanos. “Não dá pra dizer que o abusador é um doente e tem que ser preso ou alijado do convívio social, quando na nossa própria cultura existem elementos de funcionamento perversos tão parecidos com os quais ele usa pra justificar o abuso da sua prole”.

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