Comissão da Verdade e Reconciliação do Peru mostra distanciamento ao abordar questão indígena

Pesquisa brasileira analisa como indígenas são retratados no Relatório Final da CVR

Exposição “Yuyanapaq para Recordar”, no Museo de la Nación, em Lima. (foto: Flávia de Fávari, 2015)

O Relatório Final da Comissão da Verdade e Reconciliação (CVR) do Peru é objeto de estudo de Flávia de Fávari, mestre em Filosofia pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP). Ainda durante a graduação em Ciências Sociais, na Universidade de Campinas (Unicamp), Flávia fez um intercâmbio para a Universidade Nacional Maior de São Marcos, em Lima, e uma iniciação científica com foco na migração peruana para a cidade de São Paulo.

De volta ao Brasil, a pesquisadora resolveu iniciar um mestrado para se aprofundar no conflito ocorrido no Peru entre os anos de 1990 e 2000. Esse período foi investigado pela CVR e resultou em um extenso relatório. Em sua tese, Flávia analisa o contexto em que o documento foi produzido e problematiza a forma com que ele trata da questão indígena.

A escolha dos comissionados foi um dos principais aspectos que refletiram na forma como a população indígena é retratada no relatório. Dos 12, sete foram nomeados pelo presidente de transição, Valentín Paniagua Corazao (2000-2001), e cinco por Alejandro Toledo (2001-2006), que deu início ao novo período democrático. Entre eles, estavam acadêmicos, líderes religiosos, representantes do governo e das Forças Armadas. A pesquisadora pontua que o relatório é a versão oficial dos fatos. Devido ao seu formato, ele pode ter silenciado e homogeneizado narrativas. Ainda assim, ela o avalia com um saldo positivo, por ter ampliado o conhecimento sobre o período, uma vez que levantou histórias de muitas vítimas e registrou os crimes cometidos contra elas.

O conflito

A comissão classificou o ocorrido como um Conflito Armado Interno (CAI). Seu ponto de partida é 1980, quando se iniciou a luta armada do grupo Sendero Luminoso. Flávia explica que as primeiras ações dos guerrilheiros eram voltadas à tomada de poder nas pequenas comunidades andinas e não alertaram o Estado de imediato. Só em 1983, sob o governo de Fernando Belaúnde Terry (1980-1985), a região foi declarada como zona de emergência e se iniciaram as ações das Forças Armadas.

Esse foi o período de maior concentração das mortes registradas pela CVR. As vítimas foram, em sua maioria, habitantes de comunidades camponesas da serra andina, principalmente da cidade de Ayacucho. Os números alarmantes ressaltam que a população esteve entre um fogo cruzado e foi, recorrentemente, utilizada como escudo por ambos os lados do combate.

Comunidade e distrito de Sacsamarca (província de Huancasancos, departamento de Ayacucho), um dos lugares onde o conflito armado alcançou maiores níveis de intensidade e violência. Foto: Flávia de Fávari, 2017.

A questão indígena

A principal problemática abordada pela pesquisa não aparece somente no Relatório da Comissão, mas também na sociedade peruana em geral. Segundo o estudo, o vocábulo “indígena”, no Peru, possui um significado muito próximo ao da palavra “índio”, marcada por um passado de dominação cultural por colonizadores. Ele, portanto, não costuma ser bem recebido pela população. Por outro lado, o termo “mestiço” foi incorporado com maior facilidade, por partir de uma “utopia do branqueamento”, como denomina o sociólogo Gonzalo Portocarrero, professor da Pontifícia Universidade Católica do Peru (PUCP).

Os povos de origem indígena, no Peru, se concentram nas regiões amazônica e andina e são, em sua maioria, falantes do quechua. A última característica foi um dos critérios utilizados pela CVR para classificar as vítimas. Ela possibilitou dimensionar o prejuízo gerado pelo conflito à essa população. De acordo com a tese, o relatório mostra que “das 69.200 vítimas estimadas, 75% falavam uma língua materna diferente do castelhano, sobretudo o quechua”.

A resolução deixa claro que os mais atingidos pela violência foram os camponeses indígenas dos departamentos mais pobres da região afetada pelo conflito. Porém, por vezes, há nela uma visão equivocada sobre a identidade e a relação dessa população com o conflito.

Segundo o estudo, as culturas quechua são retratadas, no relatório, como parte do passado ou como sobreviventes que ainda não alcançaram o desenvolvimento econômico. Assim, ocorre a restrição ou até o apagamento das relações entre essas culturas e a realidade da população peruana atual.

Também são apontadas as consequências advindas da predominância da denominação das vítimas como “camponeses” e não “indígenas”. A pesquisa conclui que a pouca utilização do último termo reforça a sua equiparação ao vocábulo colonial “índio”, e a sua substituição por “camponês” invisibiliza toda a carga de sentido relacionada aos direitos étnicos dos indígenas.

É ainda acrescentado que, tratado como camponês, o indígena só tem sua identidade reconhecida quando ela está ligada a características estritamente socioeconômicas: dedicar-se à agropecuária ou habitar zonas rurais.

Outra imprecisão mencionada foi a de retratar os guerrilheiros do Sendero Luminoso como externos às comunidades e totalmente desconhecidos por elas. “A Comissão aponta que as vítimas eram camponeses indígenas por excelência, mas para falar dos senderistas, usa a palavra mestiços”, observa a pesquisadora. Assim, qualquer adesão ao movimento que tenha partido das comunidades é ocultada.

Conclusão do conflito

Em 1992, o conflito começou a caminhar para o seu fim. O então presidente, Alberto Fujimori (1990-2000), declara que o legislativo estava sendo um empecilho para o combate ao Sendero Luminoso, dissolve o Congresso e suspende a Constituição. O líder do grupo guerrilheiro é preso e Fujimori ganha apoio popular, sendo reeleito por mais duas vezes.

O resultado desastroso do conflito alerta para o modus operandi das Forças Armadas: “lidaram com a questão como as FA têm lidado na América Latina inteira: com brutalidade, com desprezo pela população, entendendo que está em uma guerra, sem levar inteligência”, diagnostica Flávia.

Cenário atual

Preso em 2005, por corrupção, Alberto Fujimori teve a sua pena acrescida de 25 anos, em 2009, por violações aos direitos humanos. Porém, desde dezembro do ano passado, ele se encontra em liberdade, devido um indulto concedido por Pedro Pablo Kuczynski (PPK), que renunciou recentemente à presidência do Peru, alvo de escândalos envolvendo compra de votos e o recebimento de propina da empresa Odebrecht.  

Em 2016, PPK foi eleito no segundo turno com apenas 50,12% dos votos. Ele concorria com Keiko Fujimori, filha do antigo presidente, cujo partido ocupa mais da metade da bancada do congresso. Sob o atual comando de Martín Vizcarra, vice de PPK, o Peru tem três anos até a próxima eleição presidencial e muito a se pensar.

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