O petróleo ainda é nosso?

Entre desinvestimentos na Petrobras e abertura ao capital estrangeiro, matéria-prima ainda se mostra essencial para o país

Trabalhadores em exploração de petróleo na Bahia, final da década de 1960 (Foto: Acervo Frederico Waldemar Lange)

Por Laura Castanho, Lucas Almeida e Mayara Paixão

No último ano, mudanças na gestão da Petrobras levantaram questionamentos sobre o futuro do petróleo no Brasil. Em setembro de 2016, os investimentos na empresa foram reduzidos em 25% com a aprovação do novo Plano de Negócios e Gestão, vigente entre 2017 e 2021, pelo Conselho de Administração da Petrobras. Quase um ano depois, em outubro, oito blocos de petróleo do pré-sal foram leiloados e seis arrematados. As licitações chamaram a atenção de empresas do mercado petrolífero internacional, como Shell e Exxon Mobil.

Em dezembro de 2017 ainda foi aprovada a ‘MP do Trilhão’, medida provisória que concede incentivos fiscais trilionários para petrolíferas estrangeiras. No mesmo passo, movimentos sociais e populares levantaram a bandeira em defesa da estatal brasileira nas diferentes regiões do país. Mas, afinal, qual é a importância do petróleo e da manutenção da Petrobras para o Brasil?

Na avaliação de Gilberto Bercovici, professor da Faculdade de Direito (FD) da USP, a matéria-prima é um dos elementos estruturantes de qualquer política industrial, inclusive no Brasil. “O petróleo é estratégico por vários motivos, como a produção de combustível e energia, mas o mais importante é que ele ainda é e vai ser, por muito tempo, o insumo básico da indústria”.

De acordo com o docente, titular em Direito Econômico e Economia Política, grande parte do setor industrial requer o petróleo e seus derivados para o funcionamento. Isso faz parte de um processo histórico, em que a política do petróleo esteve vinculada à estruturação do parque industrial nacional entre as décadas de 1930 e 1990.

Hoje, o país vive um novo momento dessa estruturação. “O Brasil é um paradoxo. É o caso emblemático de um país que está com parque industrial estruturado e bem posicionado, mas que está conseguindo destruir todo o setor industrial e reprimarizar sua economia”, afirma Bercovici. “O fato de você entregar o setor de petróleo para o capital estrangeiro e abrir mão de seu controle é um dos elementos dessa mudança de padrão da nova economia.”

O professor defende que a exploração do hidrocarboneto simplesmente para a exportação de óleo cru não acarreta benefícios para o país. “Seria melhor deixar ‘lá embaixo’”, diz. No cenário brasileiro, para ele, o petróleo tem função central quando o assunto é a soberania nacional.

“Se o petróleo for utilizado como elemento-chave da reestruturação do parque produtivo nacional para reforçar a industrialização, a inovação tecnológica e a educação, teremos uma fonte de recursos e matéria-prima fundamental para um país melhor no futuro. Esta é a importância da Petrobras e do controle estatal”, explica.

Reservas nacionais

Em meio às discussões sobre a exploração de petróleo, o panorama das reservas nacionais do insumo apresenta uma perspectiva positiva para os próximos anos. É o que afirma o professor associado do Instituto de Geociências (IGc) nas disciplinas de Recursos Energéticos e Geologia do Petróleo, Andre Oliveira Sawakuchi. Ele explica que existem duas províncias petrolíferas no Brasil: o pós-sal e o pré-sal das bacias de Santos, Campos e Espírito Santo.

“As reservas do pós-sal sustentaram a produção de petróleo no Brasil desde a década de 1980 e estão em declínio, enquanto as reservas do pré-sal foram descobertas recentemente e são, provavelmente, maiores que as do pós-sal”, explica.

A estabilidade atual, no entanto, pode ser ameaçada no futuro. “A longo prazo, a produção de petróleo depende de investimentos em exploração. Há áreas promissoras na busca de novas reservas, mas isto é uma atividade de risco, cujo retorno ocorre de médio a longo prazo. Atualmente, há pouco investimento na exploração e a concessão para isso depende de leilões da Agência Nacional do petróleo (ANP)”, afirma.

Leis sem ordem

No Brasil, há duas leis sobre a exploração privada do petróleo, propriedade estatal desde 1934. Uma é a lei da concessão, avaliada por Gilberto Bercovici como inconstitucional, pela qual o produto resultante da exploração do petróleo pertence ao concessionário, e não ao estado. Na prática, seria uma “flexibilização do monopólio”: caso a união quisesse, poderia conceder as atividades para empresas exercerem em seu nome. Essa lei havia sido proposta inicialmente pelo governo Collor (1990-1992) e reformada com a agenda de privatizações, logo no início da gestão Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).

A segunda lei, proposta pelo governo Lula (2003-2010) logo após a descoberta do pré-sal na costa nacional, é a lei da partilha. Nela, o estado pode terceirizar parte do processo produtivo da cadeia do petróleo, mas mantém a propriedade do recurso natural. Para Bercovici, isso faz toda a diferença. “Você está no controle do processo. É o modelo que a maior parte dos países que têm petróleo utilizam, mas só funciona se você tem a estatal coordenando tudo.”

O erro de Lula, segundo o acadêmico, foi não ter revogado a lei anterior — o que deixou o país com dois modelos conflitantes de exploração privada do petróleo, e criou uma situação nebulosa acerca de quem detém esse recurso.

Já o professor Ildo Sauer, diretor do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP e ex-diretor-executivo da Petrobras, critica ambos os modelos de exploração. “O Brasil não precisa de operador externo, porque a Petrobras pode operar. Ela é quem tem mais capacidade para fazer as coisas, e dinheiro não falta para quem quer produzir petróleo”, afirma à AUN.

Ele afirma se preocupar com os desdobramentos políticos desse tipo de interação entre o governo e as empresas, que caracteriza como conflito de interesses, e aponta que o que está acontecendo no Brasil na área do petróleo é uma “traição ao interesse público.”

“O país tem vasta capacidade de produção, mas as riquezas que pertencem à sociedade são assaltadas por grupos econômicos e outros países. O excedente [do petróleo] poderia, sim, ser usado para financiar educação pública, saúde e todas as carências que nós temos aqui, inclusive a reforma urbana”, defende Sauer.

Períodos de risco

Ao olhar para o panorama nacional, Bercovici ainda ressalta que sequer na ditadura civil-militar as políticas governamentais conseguiram mexer no monopólio da Petrobras, criada em 1953 por Getúlio Vargas. Na época, os governos militares buscaram priorizar acordos internacionais de abastecimento nacional com países como o Iraque, em vez de pesquisar novos poços no território brasileiro.

O governo de Ernesto Geisel (1974-1979) tentou aprovar os chamados “contratos de risco”, que permitiam a associação de petroleiras estrangeiras com a Petrobras para a exploração de determinadas áreas. A reação popular, porém, foi forte.

Torre de exploração de petróleo na Bahia, final da década de 1960 (Foto: Acervo Frederico Waldemar Lange)

“Mesmo na ditadura, houve uma reação muito forte contrária aos contratos de risco. Para vermos como foi impactante, anos depois, quando começa a discussão da redemocratização e da Assembleia Constituinte, se manteve o monopólio do petróleo. Havia um dispositivo proibindo os contratos de risco”, explica. “Foi uma reação à política da ditadura.”

Mão de obra nacional

Nos capítulos da relação entre a Petrobras e a história do país, a pesquisadora Drielli Peyerl afirma que há mais para se revelar. Ela explica que a estatal brasileira se destaca por ser um dos poucos casos conhecidos de empresa de economia mista (com participação do Estado e de setores privados) que assumiu a responsabilidade de formar sua própria equipe, através da qualificação de mão de obra essencialmente nacional.

Segundo Peyerl, a Petrobras também acelerou e contribuiu decisivamente para a criação do curso de geologia no país e o avanço da pesquisa científica na área. “Mesmo com a criação de cursos voltados a área de geociências em universidades brasileiras, a demanda por profissionais e cursos mais específicos voltados ao petróleo fez com que a empresa continuasse a investir em cursos de aperfeiçoamento e de profissionalização, o que culminou na criação da Universidade Petrobras”, conta.

As informações são fruto da pesquisa realizada por Peyerl, que é historiadora, e que estão no livro O Petróleo no Brasil: Exploração, Capacitação Técnica e Ensino de Geociências (1864-1968), publicado recentemente pela editora EdUFABC.

Antes mesmo da criação da Petrobras, o petróleo foi a porta de entrada para a qualificação técnica da mão de obra nacional. A pesquisadora explica que, com a criação do Conselho Nacional do Petróleo (CNP) em 1938, foram contratadas empresas ou técnicos estrangeiros para treinar brasileiros para a exploração do insumo no Brasil. “Em 1952, com as fortes intervenções nacionalistas, o CNP adotou o que podemos descrever como a primeira atitude de formação de sua própria mão de obra e de incentivos para desenvolver e aprimorar sua técnica: a criação do Setor de Supervisão e Aperfeiçoamento Técnico (SSAT)”, explica.

O SSAT foi responsável pela criação de cursos para formar profissionais na refinaria de petróleo. Com o início das atividades da Petrobras em 1954, essas estruturas e acervos foram gradativamente absorvidas pela estatal. “Em 1955, a Petrobras cria o Centro de Aperfeiçoamento e Pesquisa de Petróleo (Cenap), cujo programa visava a preparação de mão de obra especializada, voltada à exploração e à industrialização do petróleo no país. Pelo Cenap foram oferecidos diversos cursos, como de refinação, geologia, perfuração e manutenção de equipamentos.”

Mas, mesmo o histórico de aperfeiçoamento da mão de obra trabalhadora pela estatal está ameaçado no contexto atual. É o que afirma o diretor da Federação Única dos Petroleiros (FUP), João Antônio de Moraes. “A situação dos trabalhadores na Petrobras não é muito diferente da situação dos trabalhadores no Brasil de maneira geral.”

Nos últimos quatro anos, a empresa já assistiu à implementação de dois Programas de Incentivo à Demissão Voluntária (PIDV). No ano de 2014, 8 mil trabalhadores deixaram a estatal. Em setembro de 2016, esse número foi ainda maior, quando 11.704 funcionários aderiram ao Plano. Com cerca de 20 mil trabalhadores a menos, o diretor da FUP afirma que, desde que se iniciou um arrojado programa de desmonte da Petrobras, a situação dos trabalhadores ficou muito difícil.

Ele ressalta que, além dos próprios funcionários, a atuação da estatal e do petróleo tem impacto direto no dia a dia da população. “Fora essa importância energética, o petróleo ainda é responsável por milhares de produtos na vida moderna. A roupa que a gente usa vem do petróleo, a cadeira que a gente senta na escola para estudar, o remédio que a gente toma, o cosmético que a mulher usa. Não é nenhum exagero dizer que tudo que você olhar no mundo ou é feito de petróleo, ou é transportado por ele.”

Técnico da petrobras há 32 anos, Moraes destaca: “É preciso um olhar estratégico para a Petrobras, para garantir a nossa soberania e a segurança energética das futuras gerações e assegurar o desenvolvimento da cadeia produtiva de forma que o bem natural do petróleo possa gerar emprego e renda para o povo brasileiro.”

Em ato da campanha “O petróleo é nosso”, na Cinelândia, nos anos 50, o presidente da UNE, José Batista de Oliveira Jr. (Foto: Reprodução)

Um risco que vai além

A exploração e queima dessa matéria-prima colocam o Brasil, também, na engrenagem global de mudanças climáticas. Nesse cenário, para o físico e docente da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Alexandre Araújo Costa, os leilões dos campos de pré-sal e o risco iminente de privatização da Petrobras são graves, ainda mais quando analisadas do ponto de vista ambiental.

“É inadmissível que grupos privados sigam determinando quanto de carbono chega à atmosfera com base nos seus interesses por lucros astronômicos”, pontua o professor. De acordo com ele, ao falar do petróleo e sua importância para o cenário brasileiro, já passou da hora de se elencar as consequências que esse combustível fóssil, da forma como é explorado, tem gerado.

“Os impactos já estão aí, a olhos vistos. Ondas de calor recordes, mais incêndios florestais, tempestades mais severas, secas mais intensas, avanço do nível do mar”, lista. Ele explica que a queima de combustíveis fósseis leva ao acúmulo de dióxido de carbono na atmosfera e à maior absorção da radiação emitida pela superfície terrestre, que deveria seguir para o espaço — o chamado efeito estufa.

As secas inéditas na região amazônica e no Nordeste brasileiros também são prováveis reflexos da alteração climática global, ressalta. “Secas que aconteciam a cada 20 a 50 anos na Amazônia estão ocorrendo a cada 5-6 anos. No Nordeste, o que se teve recentemente foi a consolidação da maior seca já registrada numa série de dados que tem mais de um século. Não é algo que possa ser considerado normal, ou — ainda pior — que pode ser o “novo normal”.

Para o físico, o caminho na contramão da desestatização e venda da Petrobras é a nacionalização de todas as reservas — não só de petróleo, mas também de gás natural e carvão —, garantindo ao estado brasileiro o controle e a diminuição da exploração dessas riquezas. “Um modelo em que essa exploração residual seja 100% pública e em que todo o investimento energético esteja voltado para renováveis”, explica.

Costa acrescenta que essa transformação na matriz energética brasileira exige mexer, também, na própria demanda de energia, hoje pressionada por indústrias que são grandes consumidoras, como a de siderurgia e de alumínio; e também na matriz do transporte, “basicamente centrada no modal rodoviário com ênfase no transporte individual.

”O caminho, para ele, seria o investimento no processo de democratização e descentralização da própria matriz, com a solarização residencial, que permite distribuição de renda, aumento da segurança energética e geração de um número de empregos maior do que a cadeia associada às fontes fósseis. “Isso é possível com políticas públicas agressivas”, diz o professor.

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*