Brasileiros sexualizam a nudez na arte e esquecem das insinuações das novelas

Parcela conservadora da população enxerga teor sexual na nudez da arte, mas ainda naturaliza o erotismo infantil

Artista Wagner Schwartz na performance ‘La Bête’, no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Foto: Divulgação/MAM

“A sociedade interpreta o nu como um instrumento erótico. No entanto, mesmo diante de tabus e censuras, a arte nunca abriu mão da prática ao longo de toda a história.” A afirmação é do professor Rogério de Almeida, especialista em arte-educação e cultura da Faculdade de Educação da USP.

Recentemente, uma reinterpretação da obra ‘Bicho’ da artista Lygia Clark no Museu de Arte Moderna (MAM) de SP, em que o performista Wagner Schwartz é tocado nu por uma criança, causou polêmica e atraiu a atenção de organizações de direita, como o Movimento Brasil Livre (MBL). Almeida explica que, diferente do Brasil, há países com uma relação mais natural com o corpo. “As nações europeias, principalmente a França, têm um acúmulo de elementos culturais devido ao histórico iluminista e renascentista. Hoje, por exemplo, podemos encontrar uma série de filmes franceses em que as pessoas trocam de roupa ou expõe parte íntimas sem conotação sexual alguma”, aponta.

Ele afirma que ao analisar as produções audiovisuais brasileiras, a maioria dos programas e filmes mostram o corpo despido acompanhado do erotismo. Partes do corpo aparecem, geralmente, antes do sexo na novela, por exemplo. “As telenovelas apresentam os corpos de uma forma sexualizada, e as crianças tem um vasto acesso à esse conteúdo.” Almeida reflete, ainda, que o primeiro contato de jovens, sobretudo do sexo masculino, com a nudez fora do ambiente familiar se dá de maneira abrupta, por meio da pornografia.

A novela ‘Amor à Vida’ (2013), retrata a infidelidade conjugal. O médico César (Antonio Fagundes) vive aventuras com a sua secretária e amante Aline (Vanessa Giácomo). Cenas são marcadas por provocações eróticas. Foto: Reprodução

Em 2008, o Ministério Público Federal em Minas Gerais ajuizou uma ação civil pública contra a Rede Globo pedindo a condenação da emissora por danos morais coletivos devido à veiculação da novela Duas Caras. A ação foi gerada por conteúdo com apologia ao consumo de drogas lícitas, atos criminosos e, sobretudo, insinuação sexual, erotismo e promiscuidade. Em 2015, a mesma emissora enfrentou problemas com a produção Prova de Amor, que foi classificada para maiores de 10 anos de idade, em ordem do Ministério da Justiça, por conter cenas de inapropriadas e linguagem depreciativa. “Não houve uma avalanche de críticas e manifestações contra esse casos. Pode até haver desconfortos, mas isso demonstra um certo moralismo seletivo da população”, diz Almeida.

Nudez prescinde de contextualização

O especialista acredita que a relação precoce com a erotização não se dá por meio de exposições contextualizadas na história da arte, e sim, através do acesso deliberado às produções sexuais — distantes do universo da cultura. “A nudez não é erótica. O erotismo está no modo como significam um contexto. Se o artista atribui um repertório intelectual sem teor pornográfico a uma obra, ele não está fazendo apologia alguma”, ressalta.

Nu com xale branco – Nude with White Shawl. Óleo sobre tela (1919). Foto: Reprodução

Nesse sentido, o docente acredita que o corpo do artista Wagner Schwartz devia ser lido como um ser em sua forma natural e integrado ao público, assim como era vista a obra ‘Bicho’ de Lygia Clark . Em 1960, a artista declarou que seu trabalho representa “um organismo vivo, uma obra essencialmente atuante. Entre você [público] e ele [a mostra] se estabelece uma integração total, existencial. Na relação que se estabelece entre você e o Bicho não há passividade, nem sua nem dele”. Desse modo, Almeida defende que antes de criticar o toque num corpo nu, é necessário compreender o significado do ato.

História influencia conservadorismo

Almeida recorda que o corpo sempre foi desvalorizado pela cultura judaico-cristã, que funda o pensamento ocidental. O teórico e filósofo Santo Agostinho afirmava que os seres vivos nascem entre urina e fezes e, portanto, não é possível acreditar na pureza do corpo humano. Segundo o pedagogo, esse pensamento repercutiu ao longo dos séculos e alinhou pensamentos conservadores transmitidos ao longo de gerações. “O texto que funda o ideal judaico-cristão coíbe a nudez e nega a própria condição humana. O raciocínio que funda as compreensões do Ocidente trata o corpo despido como perversão.”

 

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