Como a capoeira pode ajudar no combate ao racismo nas salas de aula

Mesmo obrigatório, pesquisador alerta que o ensino das raízes afro-brasileiras segue deficitário nas escolas do país

A crescente onda de ataques aos terreiros de Candomblé no Rio de Janeiro demonstra que o Brasil ainda insiste em retroceder ao período escravocrata. De acordo com a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), foram registradas cerca de 40 denúncias de intolerância religiosa no estado. A entidade aponta, ainda, que o maior número de casos é contra as matrizes africanas.

Frente a essa realidade, a capoeira tem um enorme potencial para enfrentar a criminalização das tradições afro-brasileiras, sobretudo quando aplicadas nas escolas. É o que aponta o capoeirista Valdenor dos Santos, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), autor da dissertação de mestrado A roda de capoeira e seus ecos ancestrais e contemporâneos. Segundo ele, uma série de marcos do protagonismo negro foram apagados dos registros históricos transmitidos aos colégios. “Pouco se fala em sala de aula sobre os heróis negros, intelectuais e os estados brasileiros que foram tomados por escravizados nos levantes populares contra a escravidão”, afirma. “É preciso sensibilizar o professor sobre estes conhecimentos”.

Nascida nas senzalas, esta prática se tornou Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco em 2014 e caminha lado a lado com a história afrodescendente no Brasil.  A partir dela, é possível retratar a vida em comunidade do povo negro, além de possibilitar que os jovens entendam a história pelo ponto de vista étnico-racial. As cantigas de capoeira, por exemplo, fornecem detalhes da linguagem brasileira, sem contar que ilustram as ligações religiosas e culturais com abordagens, muitas vezes, pouco apresentadas aos alunos no ensino básico.

Adolescentes da EMEF Prof.º Saturnino Pereira posam para foto com instrumentos de capoeira após oficina sobre a modalidade com o Mestre Valdenor. Foto: Roberta Perônico

Na dissertação de mestrado, Valdenor atesta que os cânticos abrem espaço para diálogos reflexivos na sala de aula e permitem que os estudantes compartilhem perspectivas e experiências. “[Eles] formam-se como sujeitos de sua própria história, resgatam o passado e projetam-se nas possibilidades transformadoras do futuro”, escreve. Na visão do pesquisador, o conteúdo das músicas evoca a luta dos escravizados e o sofrimento deles, o que leva a denunciar o racismo.

(…) A liberdade [dos negros]

Não tava escrita em papel

Nem foi dada por princesa

Cujo nome é Isabel

A liberdade

Foi feita com sangue e muita dor

Guerras, lutas e batalhas

Foi o que nos libertou

– Cantiga do Mestre de Capoeira Barrão

Assim, Valdenor procura resgatar o papel do negro na história através de oficinas de capoeira em escolas públicas. A iniciativa parte do Grupo de Estudos ‘O hip-hop e as culturas afro-brasileiras’, fomentado pela FAPESP, a fim de pensar novas políticas públicas para a educação. O capoeirista atua em duas instituições: a EMEF Prof.º Saturnino Pereira, em Guaianazes, e a EMEF Prof.º Roberto Mange, no Rio Pequeno, levando não só a prática do esporte, como também a teoria que há por trás dela. “Nossa iniciativa é muito bem-vinda. Os jovens relatam histórias de discriminação racial e ficam sabendo sobre o Brasil por meio de outras perspectivas”, relata.

O capoeirista acredita que essa iniciativa é muito importante diante dos episódios racistas que se desencadeiam na sociedade. O Atlas da Violência 2017, lançado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), revela que de cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. Fora isso, o estudo calcula que os negros correspondem a maioria (78,9%) dos 10% de pessoas com mais chances de serem vítimas de homicídios.

Docência compartilhada em sala de aula proporciona atividades aos estudantes de escolas municipais. Foto: Roberta Perônico

“Discutir cultura e protagonismo afro-brasileiro nas escolas é uma forma de quebrar a invisibilidade étnico-racial e combater as violações racistas. A capoeira nas escolas é um instrumento para isso”, diz.

Obstáculos e descumprimento da lei

Valdenor avalia que a capoeira ainda é aplicada de forma tímida nas instituições de ensino. Um dos maiores impasses é o não cumprimento das normas que orientam a prática desta arte ancestral na educação. A Lei Federal 10.689/03, por exemplo, que torna obrigatório o ensino da história e da cultura afro-brasileira nas salas de aula, esbarra na resistência das escolas em incorporar a cultura negra em seus currículos. “Ela não é cumprida na maioria dos colégios públicos e particulares”, certifica.

O capoeirista ainda destaca que, na maioria das vezes, a lei é aplicada de forma isolada por algum professor que gosta do tema ou por projetos externos. Além disso, seus estudos revelam que a maioria das escolas não tornam as iniciativas obrigatórias para todo o corpo pedagógico. “No final das contas, o que resta é a falta de continuidade no ensino da cultura negra, e a capoeira é bastante afetada. Isso é uma forma de silenciamento e invisibilidade para o povo negro”, analisa.

Valdenor, entretanto, enxerga um futuro esperançoso para a capoeira. Corre na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei (PL) 17/2014, que torna obrigatório o ensino da modalidade nas escolas públicas e particulares do Brasil. “Apesar de não estar consolidado, o movimento pela implementação da capoeira nas instituições de ensino é grandioso e efervescente em todo o país para reconhecer a importância dela na educação”, conta.

Jovens da EMEF Prof.º Saturnino Pereira aprendendo com o Mestre Valdenor o Maculelê. Pertencente à capoeira, a expressão teatral retrata a lenda de um guerreiro negro de uma tribo enfrentando, sozinho, uma invasão inimiga com apenas dois bastões. Foto: Roberta Perônico

Para contribuir ainda mais com essa mobilização, o grupo de pesquisa do qual ele faz parte vem articulando parcerias com as Diretorias Regionais de Educação (DRE) do Butantã e de Guaianazes. No dia 30 de setembro, Valdenor apresentou o projeto à DRE de Guaianazes através de uma oficina de capoeira na Cidade Tiradentes (Zona Sul). A ideia é expandir o projeto do grupo de estudos a fim de gerar impactos positivos na qualidade do ensino afro-brasileiro. “É uma forma de resgatar o protagonismo histórico que o negro teve e ainda tem no nosso país”.

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