Relacionamento com o profissional de saúde durante a morte da criança exerce influência direta no luto dos pais, aponta estudo

A partir de entrevistas com pais que perderam filhos para o câncer, tese de Doutorado mapeia como os relacionamentos estabelecidos no hospital entre pais e profissionais se refletem na elaboração do luto

Segundo Maiara, algumas decisões precisam ser descentralizadas dos profissionais de saúde e divididas com os pais Imagem: Reprodução

Uma recente pesquisa da Escola de Enfermagem da USP teve, como foco de análise, a relação entre pais enlutados e profissionais de saúde durante o fim de vida da criança no hospital. O objetivo era estabelecer como as ações desses profissionais geravam ou não reflexos no processo de luto da família. Para isso, a pesquisadora Maiara Rodrigues dos Santos realizou entrevistas com pais e mães que haviam perdido seus filhos para o câncer, buscando mapear as lembranças positivas e negativas desses pais quanto ao cuidado profissional recebido.

O referencial teórico utilizado por Maiara foi a Teoria do Cuidado Humano, de Jean Watson. A atuação do profissional de saúde, segundo essa linha de pesquisa, é mais ampla do que simplesmente tratar de uma enfermidade, e o bom relacionamento com o paciente e sua família se colocam como parte fundamental do cuidado. Justamente por se tratar de um dos piores tipos de perda para o ser humano (como posto pela literatura científica), Santos buscou entender como os pais experenciavam o relacionamento com os profissionais de saúde quando eles tinham um filho morrendo no hospital. “eu não queria entrevistar o enfermeiro, entrevistar o médico, porque a gente já tinha feito isso em pesquisas anteriores, já existe muita literatura sobre isso”, comenta a pesquisadora. “Mas eu queria que os pais, em uma situação vulnerável, me dissessem como foi, para eles, esses relacionamentos. A partir daí, a gente ia poder dizer o que está fazendo certo e o que a gente tá fazendo errado”, completa.

Entre os entrevistados da pesquisa, o tempo há que haviam perdido seus filhos variou de 11 meses, no caso mais curto, a dez anos, no mais longo. Mas a pesquisadora conta que o tempo, nesses casos, não faz com que os pais se lembrem mais ou menos da época estudada – segundo ela, as interações do momento da morte permanecem com os pais para o resto da vida, como levantado em outros estudos. Por conta disso, quando há bons relacionamentos desenvolvidos com os profissionais na época do falecimento da criança, sentimentos positivos, atrelados à experiência, são despertados durante o luto. Nesses casos, segundo a doutora, “há a certeza de que a criança foi bem cuidada, de que ela recebeu a melhor atenção que podia, mas que, apesar disso, morreu. Então pode haver a elaboração daquela perda sem alguns sentimentos negativos atribuídos, como a culpa”.

Da mesma forma, se as interações não eram boas, isso pode resultar em lembranças e sentimentos negativos sobre a época da morte. Esse fenômeno, quando as relações na situação de final de vida se refletem em sentimentos por muitos anos depois do falecimento da criança, é chamado pela pesquisadora de “Efeito Dominó”.

 

A partir da lembrança dos profissionais de saúde, pais relatam sentimentos de diferentes naturezas
 Créditos: Maiara Santos e Ian Alves

Maiara também comenta que, além do vínculo ser diferente e por se tratar de um assunto culturalmente pouco conversado, a morte tem uma percepção e um tempo de assimilação extremamente diferentes para um pai e para um profissional de saúde. Quando percebe que a criança está chegando ao final de sua vida, o profissional algumas vezes opta por uma mudança de rotina: o controle de medicamentos e de sinais vitais fica mais espaçado; a coleta ou infusão de sangue e hemoderivados são mais limitadas; as visitas ao quarto são menos frequentes. Ainda que objetivem ser menos invasivos, a ideia transmitida aos pais, que talvez ainda não tenham assimilado a proximidade da morte de seu filho, é a de um comportamento negligente, como se os profissionais houvessem desistido da criança. “Teve um pai que falou pra mim: ‘é cruel'”, lembra a pesquisadora. “Porque ali, na frente de uma situação em que o pai não entendeu que seu filho está morrendo, o que acontece é um sentimento de abandono, de frustração, de raiva, que atrapalham o relacionamento com a equipe do hospital”.

Nesse sentido, o estudo ressalta que a voz dos pais precisa ser considerada na hora de se tomar qualquer decisão. Ou seja, a instituição não deve apenas comunicar que a mudança na rotina de cuidados não acontece por negligência, mas, também, compartilhar mais decisões com os pais do paciente. Atualmente há uma centralização das decisões nos profissionais de saúde, motivada pela crença de que o conhecimento científico é sempre superior à percepção que os pais têm sobre o cuidado. Algumas situações, esclarece Maiara, são mais complexas e realmente cabem ao profissional de saúde, como uma medicação ou um procedimento que é contraindicado.  “Mas se eu vou ou não coletar o sangue do filho… Se eu vou ou não vou medir a pressão arterial… Se o banho vai ser de manhã ou à tarde… Por que não tomar essas decisões juntos? Claro que depende sempre do caso, mas o fato é que pais de crianças com câncer se tornam experts no tratamento e podem sim ajudar em várias dessas decisões”, questiona a doutora.

 

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