Ações contra exposição QueerMuseu e performance no MAM demonstram incompreensão da arte como linguagem

Considerando a homogeneização das formas de arte um obscurantismo, educador analisa o papel das imagens estetizadas e pornográficas para a discussão política

Performance de Wagner Schwartz no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo é alvo de manifestações de grupos conservadores. Foto: Reprodução

Acontecimentos recentes no Brasil, como o caso do encerramento antecipado da exposição QueerMuseu, no Santander Cultural de Porto Alegre, ou das manifestações contra a performance La Bête, inspirada em Bichos, de Lygia Clark, e realizada por Wagner Schwartz no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), demonstram, que “há uma tentativa de homogeneizar as formas culturais de existência”. Evandro Nicolau, professor, artista e educador do MAC-USP analisa a situação discutindo o papel central da arte como forma de resistência a instrumento fundamental para pautar discussões políticas.

Do ponto de vista econômico, a homogeneização das artes tem um papel fundamental. A Comic Com de São Paulo, por exemplo, é a maior feira geek que acontece fora dos Estados Unidos. No evento, difunde-se uma cultura das formas de desenhar americana. Assim, personagens como Super-Homem, Bob Esponja povoam o imaginário gráfico brasileiro. “O que acontece é que de alguma maneira há um movimento cultural que eu até entendo pelo capitalismo, eu não posso ensinar esse desenho porque se não você emancipa determinadas formas culturais. Então há uma tentativa de totalização das formas culturais. E isso está se acirrando”, explica Nicolau.

Entretanto, do ponto de vista da emancipação do raciocínio e do desenvolvimento da ciência isso é um problema. Os ícones religiosos da Idade Média, por exemplo, “ao mesmo tempo que eram frutos de uma produção científica dos artistas, ao se serem usados pela população, traziam uma obscuridade, traziam ilusão”. No caso da ciência, o desenho é fundamental, pois “arte é ciência e ciência é arte. Cada aplicativo do smartphone que a gente usa hoje foi desenhado por alguém. Mais do que isso, o design do aparelho. Mais do que isso, o conceito de rede. Rede é um desenho. De onde vem isso? Vem com os modernistas. Vem com Marcel Duchamp falando que arte é algo intelectual que abre o campo para além do objeto, para a gente imaginar as coisas. Não tem ciência sem imaginação”, explica. Desse modo, quando se empobrece a possibilidade de usar imagens para discussões científicas e políticas, se está diante de um retrocesso.

Para Nicolau, “a política é a arte de produzir o convívio social, e não a arte de produzir a esquerda e a direita brigando. Se há algo que pode promover essa reflexão é a arte, porque a arte é amoral.” Enquadrar a arte como moral ou imoral parte de um erro fundamental que é não compreendê-la como linguagem, como ilusão, assim como já anunciava Magritte em seu antológico quadro “Ceci n’est pas une pipe” (Isso não é um cachimbo). O pesquisador explica que “quando você começa a entender o desenho como linguagem, você começa a entender que ele é construído, que ele é composição, que ele tem enquadramento, que ele tem ideologia… E que ele te ilude. E que você às vezes gosta de ser iludido, às vezes não. Mas, mais do que isso, uma imagem é alimento do imaginário.”

 

Ceci n’est pas une pipe (1928-9), de Magritte: a representação artística não corresponde aos objetos da realidade. (Foto: Reprodução)

 

Polêmicas como a do QueerMuseu e da performance do MAM trazem à tona a discussão a respeito das imagens estetizadas e das imagens pornográficas. Para o educador, uma imagem é estetizada quando se trata de um desenho consciente, com enquadramento, concepção. Mesmo que essa imagem seja erótica ou pornográfica, ela abre mais possibilidades de aproximação, reflexão, debate. O problema, para ele, é que vivemos em um mundo de imagens desestetizadas. “Quando a Record exibe um cara matando o outro numa imagem capturada por uma câmera de vigilância, essa imagem é desestetizada. Primeiro porque ela é uma imagem esvaziada da consciência de representação. A pessoa que vê aquilo tende a ler como realidade. E ao ler aquilo como realidade, ela entra em contato com um grau psicológico de violência que de certa maneira pode estimular algumas pessoas, ao invés de fazer a pessoa refletir sobre aquilo. Isso é que é o explícito desestetizado”.

Assim, as imagens de violência veiculadas por jornais seriam desestetizadas por não apresentarem uma concepção prévia, e portanto não levar à reflexão. Seriam também pornográficas pois podem levar determinados indivíduos a praticar o ato que elas representam. A veiculação das imagens desestetizadas e pornográficas na televisão aberta, à tarde, seria um contrasenso, pois embora não sejam imagens eróticas, o que proibiria a sua veiculação, podem induzir o telespectador a cometer atos muito mais danosos que o sexo, como assassinatos, por exemplo. Por isso, Nicolau alerta: “Cuidado com as imagens desestetizadas. Não vai brigar lá no MAM, vai brigar com o Datena.”

 

A ARTE COMO ATIVISMO PARA ENFRENTAR PRESENTE E FUTURO

De acordo com Nicolau, “em tempos de crise, a cultura e as artes são as primeiras a serem sangradas, porque é ali que está a expressão do imaginário. Isso não é de hoje. Giordano Bruno foi assassinado. Leonardo da Vinci fugiu com a Monalisa, quer dizer, quando a gente começa a perseguir formas culturais, a gente começa a correr risco de perder ideias”. Diversas instituições, como o fascismo, a ditadura militar, a igreja católica, os movimentos fundamentalistas fizeram isso, e, nesses momentos, cabe a quem trabalha com a linguagem e o imaginário contra-argumentar, resistir.

Essa resistência, sublinha Nicolau, precisa “compreender como o simbólico está se manifestando e como é que a linguagem elabora essa nossa relação com a percepção, com a memória e com a imaginação num mundo em crise.” Embora parcelas da sociedade busquem entender o artista como alguém fora do mundo, “quando você vê o MBL (Movimento Brasil Livre) e os manifestantes querendo brigar só por causa de uma obra de arte dentro de um museu, é porque  alguma coisa tem. Não adianta a gente ignorar que algo está acontecendo”. Completamente embrenhada nos saberes científicos, políticos, sociais, a arte em momentos de crise é uma das principais frentes que permite enfrentar e resistir.

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