Resistência marca história de mulheres moçambicanas durante colonialismo português

Pesquisa explora trajetória de mulheres “indígenas”, exploradas e detentoras de poucos direitos perante a dominação masculina

Moçambicanas aguardam para votar nas primeiras eleições multipartidárias do país após a independência, no distrito de Catembe, em 1994 (Foto: Pernaca Sudhakaran/ONU Imagens)

Quarta nação africana a legalizar o aborto e possuidora de um parlamento representativo, contendo 40% de suas cadeiras preenchidas por parlamentares femininas, Moçambique carrega histórias coletivas e individuais da luta de mulheres para chegar ao quadro atual. Parte dessas moçambicanas, com um recorte local e temporal, tiveram sua trajetória pesquisada pelo estudo da historiadora Juliana de Paiva Magalhães.

A pesquisadora investigou as formas de enfrentamento à violência usadas pelas mulheres “indígenas”, maioria absoluta da população e colocadas à margem dos direitos sociais durante o período tido como o auge do colonialismo português no país — a primeira metade do século 20. Segundo Magalhães, a presença dos invasores portugueses recrudesceu “em níveis nunca vistos e incontroláveis” a violência masculina já presente na região.

“A relação que se estabelece é de exploração máxima”, pontua a pesquisadora que quis entender, dentro desse contexto maior, como que o aumento da violência afetou as mulheres do sul do país, região onde instalou-se a maior parte do aparato português e que viveu um processo de colonização mais intenso. “A gente lê, desde o colegial, que o colonialismo na África foi brutal, violento de múltiplas formas. E eu queria entender como o colonialismo tinha afetado a vida das mulheres”, completa.

Sob o domínio de um patriarcado africano e também português, as sul moçambicanas fizeram uso de diferentes mecanismos para resistir. Um deles, conforme revelou a pesquisa de Magalhães no arquivo histórico de Moçambique — principal banco de documentos do país com importância regional da África — , foi realizar denúncias nas próprias instituições do poder colonial, como os tribunais, para relatar abusos sofridos.

Outros mecanismos menos formais também foram empregados na luta diária das sul moçambicanas. Foi o caso de mulheres que, como narra a pesquisadora, fugiram das aldeias de seus maridos e foram para as cidades para trabalhar e, dessa forma, poder pagar de volta o dote dado pelo marido no momento do casamento. Só assim elas poderiam formalizar o divórcio.

Os relacionamentos abusivos entre homens e mulheres não se estenderam apenas à relação entre marido e esposa em meio às relações poligâmicas da região. A presença do colonizador português, defende Magalhães, elevou a violência e desmantelou os valores locais em tamanha intensidade que mesmo os filhos chegaram a agredir suas mães — algo que seria repudiado prontamente nas comunidades tradicionais, nas quais o respeito aos mais velhos e o valor do ‘coletivo’ sobrepunham-se ao indivíduo.

Divisão social

Para entender o impacto causado pelos portugueses, a historiadora buscou compreender como funcionavam as comunidades tradicionais da região. A resposta encontrada foi que, na Moçambique pré-colonial, a figura do homem já era tida como superior. A presença dos portugueses intensificou essa dominação.

Isso porque a região possui um sistema patrilinear, o que significa que o pai é o responsável por passar a linhagem para os filhos. Após o casamento, a mulher sai da aldeia de sua família e vai morar na aldeia do companheiro escolhido. “Lá, ela não tem autoridade e é vista com desconfiança pela sogra e pelas irmãs do marido. Ela sai de um âmbito familiar e vai para um local onde não tem autoridade”, conta a pesquisadora.

A chegada dos colonizadores portugueses, como constatou Magalhães, submeteu moçambicanos e moçambicanas a um alto grau de violência e transformou a ordem social. Se, antes, o país africano era constituído pela coexistência de diferentes tribos, com os portugueses, uma nova categoria foi criada: a dos indígenas.

Mulheres participam de reunião da Frelimo (Frente de Liberação de Moçambique), em janeiro de 1972, ainda durante a dominação dos portugueses (Foto: N Basom/ONU Imagens)

“A maioria absoluta da população era ‘indígena’, aquelas pessoas superexploradas, que tinham poucos ou nenhum direito e muitos deveres frente o poder colonial”, explica Magalhães. A categoria é classificada como ‘sociojurídica’, construída a partir de uma série de decretos e preconceitos que marginalizaram essa parcela da população.

“Cada vez mais, ela vai ser uma categoria racializada. Ou seja, africanos de pele escura são os indígenas”, pontua a historiadora. “Moçambique era um território pluriétnico, e todo mundo ‘vira’ indígena. É uma maneira de você homogeneizar e esvaziar a civilização e os conceitos de cada grupo”, completa.

Foram as mulheres pertencentes a essa categoria subalternizada, que até hoje vivem com as desigualdades estruturais herdadas, que Magalhães se dedicou a estudar.

Viagem a Maputo

Intitulada Trajetórias e resistências de mulheres sob o colonialismo português (Sul de Moçambique, XX), a tese de doutorado de Magalhães faz parte de um projeto maior, o convênio de cooperação acadêmica entre a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Eduardo Mondlane (UEM), de Moçambique, que está em sua segunda fase.

Coordenado pela professora Maria Cristina Cortez Wissenbach, da USP, e pela professora Luísa Chicamisse Mutisse, da universidade africana, o projeto “Entre o Índico e o Atlântico: conexões históricas, circulações e desafios epistemológicos” possibilitou, por exemplo, a viagem a campo da pesquisadora, que passou quatro meses em solo moçambicano, em Maputo, capital e maior cidade do país localizada no litoral sul.

Segundo Magalhães, essas semanas “intensas” foram essenciais à sensibilidade do trabalho de representar as trajetórias femininas das “indígenas” moçambicanas. “Estar na África é uma vivência essencial para o investigador do africano, porque você acaba revendo estereótipos, idealizações, repensa questões e desconstrói generalizações. O presente te informa o que você vai procurar no passado”, argumenta, “aquela história de que ‘a cabeça não pensa onde os pés não pisam’ faz muito sentido.”

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