A silenciada literatura de autoras negras

Pesquisa de doutorado da FFLCH-USP mapeia e analisa romances brasileiros de autoria negro-feminina

Reprodução. Fonte: http://centrodepesquisaeformacao.sescsp.org.br/

A literatura brasileira de autoras negras tem uma produção aparentemente pequena. Pequena, porque, como elencou a pesquisa da doutoranda Fernanda Rodrigues de Miranda, há apenas 10 romancistas negras publicadas no país. Aparentemente, porque esse número provavelmente não representa a totalidade de obras publicadas desde que Maria Firmina dos Reis, em 1859, publicou o pioneiro romance Úrsula.

No artigo Notas sobre o romance brasileiro de autoras negras, do número 10 da revista Opiniães, Fernanda Rodrigues de Miranda, doutoranda da FFLCH-USP, analisa três obras de autoras brasileiras negras, publicadas em três séculos diferentes. Mesmo distantes no tempo, Miranda percebe semelhanças entre esses romances. “Existe uma questão latente, o sentido de não pertença ao nacional. A maioria desse romances coloca em questão o fato do corpo negro não ser parte do projeto de nação brasileira.”

A ausência de uma busca de identidade nacional no romance de Maria Firmina dos Reis demonstra, segundo Miranda, esse sentimento de deslocamento no país. “Maria Firmina pensa no negro como um sujeito que veio da África e que é escravo aqui. Desde que Firmina o observa como sujeito que tem um pertencimento anterior a sua condição de escravo, a autora, escrevendo durante o romantismo, não investe diretamente no projeto de nacionalidade brasileira. Um projeto que escraviza, que não agregava o negro como sujeito do nacional, mas somente como objeto de propriedade”, argumenta a doutoranda. “Seria uma contradição imensa trabalhar o negro como sujeito durante a escravidão e, ainda assim, investir em um projeto de nacionalidade brasileira. A nacionalidade brasileira não negociou a presença negra de forma igualitária, e as consequências dessa nacionalidade por subtração são observadas hoje em dia.”

Quanto a estes conflitos do século 19 e a literatura feita naquele período, Miranda aponta os desencontros entre o abolicionismo e ideias pró-negro. “A Escrava Isaura, que é cânone, faz parte do nosso currículo de formação, é uma obra que defende uma mulher branca na condição de escrava, porque apenas uma mulher branca poderia comover aquele público e, portanto, a escravidão poderia ser considerada algo ruim. Porque o negro não é sujeito, seu sofrimento não comove os leitores, a condição de escravo está tão naturalizada naquela sociedade que colocar um personagem negro como pessoa é impensável”, avalia Miranda.

Para a pesquisadora, é isso o que faz da Firmina um uma ruptura total com a literatura da época. “José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, autor da Moreninha, diversas obras clássicas, muitas consideradas abolicionistas, não estão de fato empenhadas na libertação dos negros. Estão empenhadas em destruir a instituição da escravidão, por uma questão econômica, política, de constituição de um capitalismo que precisaria de sujeitos livres”, aponta a doutoranda. “Tanto que é justamente nessa época, depois da escravidão, que o racismo institucionalizado em várias estruturas começa a ganhar mais força no Brasil, porque não havia mais escravidão como um mecanismo legal de diferenciação das pessoas.  Então, essa diferenciação precisou ser inculcada em outros mecanismos, outros lugares. Não há mais escravidão, como vamos tratar o diferente agora?”.

Troca de identidades

No entanto, apesar da importância do trabalho de Maria Firmina, a autora permanece fora do cânone literário do Brasil. Inclusive, em um exemplo evidente de invisibilização da literatura afro-brasileira, a imagem da autora fora equivocadamente confundida pelo próprio poder público do Maranhão. “Eles foram fazer uma homenagem à Firmina e encomendaram um quadro para um artista, dando uma foto como referência e até hoje esse quadro é considerado a reprodução da imagem da Maria Firmina dos Reis”, narra a pesquisadora. “O problema é que é a imagem de uma mulher branca. Se você digitar Maria Firmina dos Reis no Google, vai encontrar a imagem de uma mulher branca”, lamenta.

De acordo com Miranda, o equívoco na representação pictórica de Firmina foi apontado pela primeira vez pela pesquisadora Régia Agostinho da Silva, em tese de doutorado defendida no Departamento de História da FFLCH-USP. Como consta no texto, “em algum momento alguém tomou a imagem da escritora Maria Benedita Câmara Bormann, conhecida pelo pseudônimo de Délia, escritora gaúcha do século 19, e que faz parte de um capítulo do livro História das mulheres no Brasil, dentro do artigo de Norma Telles, e usou esta imagem como a imagem de Maria Firmina dos Reis. É esta imagem do quadro que está na Câmara de Vereadores de Guimarães [cidade em que Firmina viveu], embora estudiosos locais já saibam da confusão, o quadro permanece lá, como sendo da escritora maranhense.”

“Não existe nenhuma referência histórica de imagem da Firmina, a única coisa que se tem  é uma coletânea de depoimentos sobre ela, que foi coletada posteriormente, por José Nascimento Morais Filho, que encontrou os materiais da Firmina e foi tentar descobrir quem era aquela figura. Ele conseguiu conversar com algumas pessoas do Maranhão que conheceram a Firmina viva. A descrição dada por essas pessoas é a única fonte de informação que dispomos. Uma mulher de cabelo crespo, de pele morena, nariz largo, baixinha”, conta Fernanda de Miranda.

Sem uma referência imagética legítima, a análise que se faz de Úrsula não parte da autoria da obra, mas do próprio romance. “A Firmina tem uma dicção negra, o ponto de vista do romance é negro, a maneira como ela constrói a narrativa, o ponto de vista e, digamos assim, a ética dos personagens, é toda pautada em uma ideia do negro como agente da história. O negro é o parâmetro moral a partir do qual o branco se espelha”, explica Miranda, fazendo alusão a tese do professor Eduardo de Assis Duarte. “Isso no contexto do século 19, anterior a abolição da escravidão, quando o negro nem era considerado pessoa, é algo muito diferente do que estava sendo feito. Nós consideramos que ela tem uma dicção negra, porque ela dialoga com uma experiência negra. Somente quando se tem algum pertencimento a essa experiência, é que se pode falar com propriedade sobre ela. Firmina faz isso.”

O romance Úrsula traz personagens femininas mais profundas e desenvolvidas em relação ao que se publicava na época. As personagens brancas do livro compartilham da insatisfação quanto às perspectivas de amor e matrimônio de então. Enquanto a personagem negra da narrativa, Susana, é mais velha, tem uma vasta memória e é africana, portanto, não tem uma identidade brasileira. “[Úrsula] é a primeira narrativa feita por um autor brasileiro, que fala da experiência da travessia no navio negreiro. A personagem Susana tem uma longa fala, em que conta como era o navio, como os negros eram tratados. Esse é o primeiro relato que temos de um personagem que fala em primeira pessoa dessa experiência. Nem o Castros Alves faz isso. O Alves sempre coloca eles, os escravos, eles, os negros. A Firmina traz a primeira pessoa, ‘eu vivi essa experiência’. Susana é uma personagem feminina, africana, central para a estrutura da obra.”

Miranda, no entanto, faz uma ressalva. “Acho que seria forçado dizer que é uma obra feminista, porque está muito circunscrita também no tempo histórico. Esse é um olhar que tenho sempre me esforçado para ter, porque trabalho obras contemporâneas que já possuem esse olhar, e meu olhar é de hoje, de uma mulher jovem, do século 21. Mas, ainda assim, se a gente fizer uma comparação de outras obras do mesmo período da Firmina, as personagens femininas dela são bem interessantes.”

Apesar da boa recepção da obra à época de publicação e do fato de Firmina escrever para os jornais, o trabalho da escritora ficou muito tempo no esquecimento “até que na década de 1970, o pesquisador José Nascimento Morais Filho, que estudava algo relacionado à escravidão no Maranhão, encontra notícias da época sobre a publicação de Úrsula. Ele ficou impressionado e foi pesquisar mais e então coletou aqueles relatos que dizem que ela é uma mulher negra”, conta a doutoranda. “Os grandes manuais de literatura brasileira, do Antonio Candido, do Alfredo Bosi, que falam do Romantismo, nenhum deles cita a obra da Firmina. Existem ainda materiais dela que foram perdidos, ela tem uma larga produção escrita. Hoje em dia há todo um esforço para colocar essa autora no lugar que ela merece. Aqui na USP, há a dissertação de mestrado de Luciana Diogo, defendida no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) em 2016, e existem outras pesquisas de peso dedicadas à autora.”

O escritor Lima Barreto será o autor homenageado da Flip 2017. Foto: Domínio Público.

Quando questionada se a homenagem da Feira Literária de Paraty (Flip) à Lima Barreto poderia ajudar de alguma forma a dar visibilidade às autoras negras, Miranda é hesitante. “Todo debate sempre ajuda. No limite, nós estamos falando de uma disputa da própria marcação que o cânone literário exige, é sempre um lugar de disputa. A homenagem ao Lima Barreto já é o resultado de uma reivindicação, porque na edição anterior da Flip não havia representação negra”, lembra Miranda. “Alguns pesquisadores e autores passaram a questionar isso nas rede sociais, na imprensa e então resolveram colocar o Lima Barreto. É toda uma política e um jogo de forças que atua o tempo todo.”

“O fato é que  nós ainda patinamos muito no Brasil quando se fala de pensar a literatura brasileira para além do que ela é hoje, uma literatura masculina, branca, elitista”, considera a pesquisadora. “Mas, ainda assim, eu acho que esse grandes eventos ajudam. Por exemplo, em decorrência da Flip, vai haver o lançamento de uma biografia do Lima Barreto. Temos que manter esse olhar crítico. Ficar contente, porque algumas coisas estão mudando, mas sempre pensando que só aconteceu, porque tem muita gente pressionando.”

O Colonialismo que permanece

As outras duas obras apresentadas no artigo Notas sobre o romance brasileiro de autoras negras são Um Defeito de Cor (2006), de Ana Maria Gonçalves, e As mulheres de Tijucopapo (1982), de Marilene Felinto. O primeiro é um romance histórico, para o qual Maria Gonçalves fez uma extensa e densa pesquisa. A escritora chegou a resgatar figuras de anúncios de jornais sobre fuga de escravos e conferiu a elas uma humanidade que lhes foi negada em vida. A narrativa acompanha a trajetória de vida de uma protagonista mulher e negra.

Ana Maria Gonçalves no Festival Latinidades 2014. Foto: Valter Campanato/Agência Brasil.

Já o romance da jornalista Marilene Felinto tem uma narrativa contemporânea, que guarda resquícios do século 19. “É um romance que tem um enredo todo construído dentro da experiência de uma personagem que sofre pelas estruturas sociais. A protagonista nasce em Pernambuco e vem para São Paulo. Essa parte tem um aspecto autobiográfico da autora. A personagem tem de lidar com experiências do passado, que são difíceis, traumáticas, porque são frutos de uma circunstância de classe, raça e gênero. Ela vem de uma família pobre do Nordeste e tem toda a questão de ser uma mulher negra nordestina em São Paulo”, conta Miranda.

Na narrativa de Felinto o sentimento de deslocamento da personagem principal é tão grande que a impele a trocar o português pelo inglês. “A questão da dicção nordestina, no corpo de uma mulher negra é tão tensa que ela simplesmente se sente impedida de se comunicar em português, porque este idioma pauta o silenciamento opressor que ela sofria. Novamente, a questão da pertença ou não à identidade nacional”, destaca a pesquisadora. “No fórum íntimo, ela só consegue se comunicar em inglês. A língua que, no limite, representa o Brasil, não lhe cabe. As emoções dela não cabem nessa língua. Além disso, quando ela escreve em inglês, não parte do pressuposto de que vai ser compreendida, porque o inglês não é o idioma padrão de onde ela vive, então não necessariamente ela quer o contraponto, o interlocutor”, observa a doutoranda.

Para Fernanda Rodrigues de Miranda, as inquietações de As mulheres de Tijucopapo, sobre desterritorialização, falsa integração e falsa comunidade, o tornam interessantíssimo. “É um romance que pauta as opressões presentes na Maria Firmina dos Reis, na Ana Maria Gonçalves, presentes também na Carolina Maria de Jesus, na Conceição Evaristo e em outras obras negras. Ou seja, no fundo, é essa ideia de que o colonial não necessariamente acabou no Brasil, porque as instâncias coloniais continuam funcionando”.

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