Em cartas trocadas com Mário de Andrade, Carlos Lacerda mostra uma outra faceta

O projeto de pesquisa realizado no Instituto de Estudos Brasileiros revela, através das correspondências trocadas com Mário de Andrade, um Carlos Lacerda diferente da figura que ficou estigmatizada na História

Foto: Camilla Freitas. Documentos presentes no Arquivo do IEB - USP.

Carlos Lacerda foi um jornalista e  político muito polêmico da história recente da República no Brasil. Membro da UDN (União Democrática Nacional) e, futuramente, governador do estado da Guanabara, seu nome está associado ao seu posicionamento anti-getulista e ao seu apoio e futura desilusão com o golpe de Estado em 1964. O projeto de pesquisa de pós-doutorado, realizado por Rodrigo Jorge Ribeiro Neves,  intitulado Entre Letras e Lutas: Edição de Texto Fidedigno e Anotada da Correspondência de Mário de Andrade e Carlos Lacerda, traz, entre outras coisas, uma outra faceta dessa figura histórica.

A ideia da pesquisa, que está sendo realizada no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) e é financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), surgiu através do desejo do pesquisador em lidar com personalidades que transitavam entre o engajamento político e o artístico. Por já ter trabalhado com edições de cartas de Mário de Andrade, uniu, assim, os seus dois interesses. “Queria um correspondente do Mário de Andrade que apresentasse esses conflitos entre estética e política. Foi quando conversei com o professor Marcos Antonio de Moraes e ele sugeriu a figura do Carlos Lacerda como um nome bastante interessante para desenvolver essa dualidade”, conta Rodrigo.

Segundo o pesquisador, em um momento de extremas polarizações político-ideológicas o estudo da correspondência de Mário de Andrade com  Carlos Lacerda pode ser bastante esclarecedor, principalmente porque, assim como hoje, o período no qual os dois se correspondiam foi marcado, também, por uma grande polarização, já que as cartas eram trocadas entre “o pós Revolução de 1930 e o Estado Novo”. “Lembro quando via declarações do Graciliano Ramos falando que alguém na rua o encontrou e o chamou de comunista como xingamento; eu achava aquilo um absurdo, que jamais aconteceria nos dias de hoje, essa coisa de usar determinada posição ideológica como xingamento, e é exatamente isso que vemos acontecendo”, relata Rodrigo.

Quando se correspondia com Mário, Carlos Lacerda tinha em torno de 20 anos e sua posição política, que hoje o estigmatiza, ainda não era consolidada. Ele, que passou para a história como um ferrenho anticomunista, encarava com receio, por exemplo, movimentos tenentistas porque acreditava que eles poderiam guinar à “direita” e ao “fascismo”. “É interessante perceber, por meio da correspondência, a formação daquele intelectual, tanto a formação estética e política quanto a  ideológica, partidária e humana”, conta. Para Rodrigo, o estudo sobre Lacerda é muito centralizado em sua vivência política, contudo, sua vivência estética, apresentada nas correspondências com as quais o pesquisador lida, não deve ser desassociada à figura pública do jornalista.

Arte: Camilla Freitas Soares . Trecho extraído do livro Cartas: família, amigos, autores e livros, política. Organizado por Cláudio Mello e Souza e Eduardo Coelho

As cartas

Pelo fato do trabalho encontrar-se em fase preliminar, o pesquisador diz que ainda tem muita coisa para descobrir, ou seja, muitos documentos para encontrar. Grande parte das correspondências pertencem a Carlos Lacerda, já que as que eram de Mário se perderam, mas, para Rodrigo, esse que poderia ser o maior dos infortúnios de sua pesquisa, não a afeta de maneira tão determinante. Para o pesquisador, muitas cartas de Mário de Andrade podem ser “decifradas” pelas cartas subsequentes de Lacerda, ou seja, pela resposta que o jornalista as dá.

Além desse árduo trabalho, o pesquisador não se restringe às correspondências disponíveis no acervo do Instituto de Estudos Brasileiros. “Por enquanto a pesquisa tem se concentrado no IEB, mas também tenho visitado o Rio de Janeiro, principalmente o Arquivo Nacional, que tem um acervo gigante”. Rodrigo também pretende visitar o arquivo público do Rio, “porque o Lacerda era carioca, então tem muita coisa dele nesse arquivo”; a Fundação Casa de Rui Barbosa; o acervo de Carlos Lacerda que fica na UnB, já que “eles têm um grande acervo com diversos documentos da trajetória política e intelectual do jornalista”; além de outros acervos públicos de estados como Minas Gerais e Bahia.

O interesse da Universidade estadunidense de Yale também enriquece a pesquisa. O professor Kenneth David Jackson, que é um estudioso da literatura brasileira e tem um interesse particular na figura de Mário de Andrade, foi quem fez o convite. “A Universidade de Yale, à princípio, estaria disposta a me receber para que desenvolvesse uma parte da pesquisa lá, e isso pode ser interessante porque posso acabar descobrindo algum tipo de documento que pode ser fundamental para a pesquisa”, conta Rodrigo.

Nas cartas, Mário e Lacerda falam sobre diversos assuntos, mas o que surpreendeu o pesquisador foi a audácia do jornalista, que naquela época era muito jovem, em tratar de assuntos delicados e complexos com o homem que já era consagrado como um dos maiores escritores da história do País e um ícone do Modernismo. “Há uma carta em que o Lacerda faz vários comentários sobre a importância de Mário assumir uma posição diante do quadro político 一 essa carta é de 1934. Se pensarmos, neste ano ainda não estávamos no Estado Novo, mas estávamos vivendo, não só no Brasil como no mundo, um período muito conturbado politicamente”. Para o pesquisador, sua crítica era voltada não diretamente para o escritor, mas para todos os intelectuais que se mantinham distantes da realidade brasileira. “Quando vejo alguns intelectuais de hoje percebo questões muito semelhantes, alguns completamente descolados da realidade das pessoas, das comunidades afrodescendentes, dos indígenas, das periferias”, opina Rodrigo. “Existem, é claro, figuras que promovem a penetração nesses campos, mas eu acho pouco. Penso que a universidade, principalmente a pública, exerce muito pouco do que poderia exercer dentro desses espaços.”

Ao cobrar esse tipo de posição de Mário, afirmando, por exemplo, em uma de suas cartas, que “não adiantava um intelectual se preocupar com as questões sociais e políticas e ao mesmo tempo fazer conferências para os grandes salões burgueses”, Lacerda mostra-se uma figura multifacetada que o pesquisador desvenda através do árduo trabalho de pesquisa e trato das cartas (sua organização e elaboração de notas detalhadas). Para ele, as cartas não se tratam, apenas, do diálogo entre dois intelectuais, mas também do diálogo entre duas pessoas que, mutuamente, se respeitavam.

Arte: Camilla Freitas. Trecho extraído do livro Cartas: família, amigos, autores e livros, política. Organizado por Cláudio Mello e Souza e Eduardo Coelho

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