Saraus: lugares de sociabilidade e resistência

Mestrado da Faculdade de Educação estuda a influência da literatura periférica nas trajetórias formativas de autores e leitores que frequentam saraus e mantém cultura em espaços excluídos da sociedade

Fonte: Uol Notícias

“A literatura é uma possibilidade de muitas coisas. Ela traz uma humanidade para o indivíduo, nos forma, nos tira de um espaço e nos coloca em outro. Ela faz pensar”, afirma a mestre Aline Maria Chamone. Pretendendo analisar o papel da literatura no processo de formação das pessoas, Aline estudou os saraus da periferia de São Paulo, percebendo-os como “espaços para aprender na amizade e liberdade”.

Em sua dissertação, defendida em 2016, na Faculdade de Educação da USP, Aline acompanhou diversos saraus da cidade, desde os mais antigos, como a Cooperifa e o Sarau da Brasa, até os mais novos, além de entrevistar oito escritores provenientes destes espaços, de modo a perceber como a participação nos saraus influiu na trajetória de vida dos autores e leitores e se a literatura “estava realmente transformando alguma coisa” dentro da periferia e “impulsionando ações no contexto social”.

Amizade e liberdade

A literatura marginal, ligada aos movimentos de contracultura da década de 70, sofreu uma ressignificação no início dos anos 2000. A partir de então, o termo marginal se desloca da referência a uma produção que circulava no espaço acadêmico e entre uma classe média intelectualizada para um espaço em que a marginalidade é marcada pela exclusão social, iniciando-se, desta forma, a ideia de uma literatura periférica. Assim, de acordo com Aline, “os saraus têm essa característica de serem o lugar de manifestação dessa literatura periférica, onde essas as pessoas escutam, falam, onde têm voz”.

Constituídos de maneira semelhante, com “um microfone aberto”, permitindo que cada um que queira possa declamar uma poesia e “uma mesma hierarquia de recepção”, tanto para a literatura canônica, ou seja, aquelas obras ou autores já consagrados pela tradição literária, quanto para textos de novos escritores, estes espaços permitem, em um primeiro lugar, uma liberdade para que iguais possam compartilhar a palavra da forma como quiserem. Ao mesmo tempo, os saraus “fortalecem laços entre pessoas que começam a caminhar para um objetivo comum”, o que possibilita a formação de redes de sociabilidade que se constróem em torno de “ver um sentido na literatura”.

Frequentando um espaço que permite o contato com a literatura e o encontro com seus semelhantes a partir de uma perspectiva cultural, as pessoas podem ir de um lugar à outro e apreender novos pensamentos e vivências. Com isso, suas trajetórias de vida podem ser profundamente alteradas, tanto em um sentido de formação e construção da personalidade quanto no de se iniciarem novos caminhos a serem traçados pelas pessoas, que podem partir do sarau para criar novos percursos baseados na cultura e na arte.

Confira o vídeo:

Uma forma de resistência

“Nas periferias, a literatura alterou significativamente algumas coisas”, afirma Aline. “Para algumas pessoas, é algo inédito. No sarau, elas ouvem uma poesia que talvez não teriam ouvido em outro lugar ou lido em um livro”. Segundo a pesquisadora, o surgimento destes novos centros culturais é extremamente importante dentro da periferia, por refletirem, na produção de uma literatura crítica e reflexiva, um movimento de resistência “ao lugar comum” que é esperado destes locais e população.

Primeiramente, produzir literatura dentro de um bar é uma “resistência à ausência de espaços culturais dentro da periferia”, já que, de maneira geral, espera-se que, para criar um sarau, seja necessário uma biblioteca ou um salão. Neste sentido, esta população periférica, a partir de um movimento que busca por mais cultura, acaba gerando uma luta pela ocupação de espaços e, consequentemente, “uma subversão da ordem social”.

Além disso, o sarau “tira uma pompa de que a literatura está só nas grandes bibliotecas ou na universidade”, ao possibilitar a aproximação do público com os autores, que podem “morar ali do lado”. O espaço do sarau é um lugar de  inversão entre a relação periferia-centro, já que “geralmente, as pessoas saem dos seus bairros para verem algo cultural” e, sobretudo, de tomada de consciência, de ver que “a literatura também pode estar ali”, e pode, do mesmo modo ser produzida por um grupo cujo contato com essa arte é historicamente reduzido. “Tudo isso se encaixa na ideia de resistência”, pontua Aline. “É resistência à normalidade, àquilo que está colocado para a periferia, daquilo que não tem. Para mim, resistência é isso”.

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